Direção: Lynne Ramsay. Roteiro: Lynne Ramsay, Jonathan Ames. Produção: Jonathan Ames. Fotografia: Thomas Townend. Montagem: Joe Bini. Música: Jonny Greenwood.
“Você Nunca Esteve Realmente Aqui” (2018) é um dos melhores filmes do ano passado. Escrito e dirigido pela escocesa Lynne Ramsay (Precisamos Falar sobre o Kevin – 2011), o longa pode ser lido como uma história de crime e de ação onde a convencionalidade e os padrões do gênero são sutilmente subvertidos em favor da originalidade narrativa. Fazer essa leitura, sobretudo no cinema contemporâneo, é algo cada vez mais desafiador. Sentimento esse superado apenas pelo prazer de estarmos diante de obras tão sólidas quanto essa.
Adaptado do livro de Jonathan Ames, o filme conta a estória de Joe (Joaquin Phoenix), um veterano traumatizado que, sem temer as consequências da violência do cotidiano, trabalha como uma espécie de “caçador de recompensas” do século XXI, resgatando garotas desaparecidas em Nova York. Quando um dos seus trabalhos fica fora de controle, ele se vê dentro de uma perigosa conspiração que o levará a dois caminhos: à morte ou renascimento.
A busca pela construção de uma alternativa no olhar é uma das linhas que regem nosso longa. Interessantíssimo notarmos como Ramsay parte de uma abordagem bem convencional para desconstruir e até mesmo jogar com a ideia de despadronização da forma e do sentido do filme. Partindo da forma, percebemos uma intenção clara da diretora em desenvolver situações que nos induzam à situações climáticas, mas que não se concluem do modo como a cinematografia de gênero costuma operar. Mas que incompletude é essa? E como ela se dá?
Em tese, “Você Nunca Esteve...” seria um “anti John Wick” (2013-2019). Mas não de um modo negativo, claro. Ambos são maravilhosos filmes de ação. Mas naquilo o que os longas de Chad Stahelski ofertam como recompensa ao final de cada luta travada pelo protagonista, Ramsay opta por suprimir. Daí, em vários momentos onde o embate entre Joe e seus algozes ocorre, dificilmente vemos o desenvolvimento desse confronto. E a violência que nesse cinema se legitima pelo combate físico, aqui se materializa por outros meios: ora como uma elipse no tempo/espaço, ora pela distância do dispositivo.
E aí, quando vemos Joe entrando em um prédio e ferindo ou matando cada um dos seus oponentes, isso aparece na tela a partir de um monitor do circuito interno que estaria filmando o personagem naquele espaço. Isso nos leva a um entendimento do que poderíamos chamar como um movimento de hiperdiegetização da narrativa, onde o dispositivo (câmera interna) está dentro do filme e se torna, para nós, enquanto espectadores, a única ferramenta de vermos o que ocorre na cena. E isso é algo genial. Isso é pensar o cinema de gênero com criatividade. Essa é a originalidade de que falamos anteriormente.
Assim, chegamos à noção de sentido do longa. Bem como à sua característica mais notável: o elemento ausente. Aquele que se materializa exatamente naquilo o que não vemos. O signo da supressão que atestamos na figura arquetípica do próprio Joe. Clivado, ele é o herói brutalizado pela espiral de violência que o cercou durante a vida adulta e pelos eventos que o fraturaram ainda durante a infância. Com base nisso, a diretora destroça esses índices e os compartimenta ao longo de todo o filme. São flashbacks de um passado que não vemos como um todo e acertadamente não didatiza nossa interpretação sob o protagonista.
Na tentativa de juntar essas peças durante os 89 minutos de filme, o que conseguimos é a libertatória sensação de darmos o sentido sob o que foi e é a vida de Joe e sua protegida, a adolescente Nina Votto (Ekaterina Samsonov), a partir da interpretação que fazemos desta narrativa. Na verdade, eles são a dupla improvável que se constrói livre dos clichês hollywoodianos exatamente pelas experiências de ausência entre os personagens. E aquilo o que poderia ser tomado como uma frustração, na verdade, é o índice de maior força da estória. Testemunhar a saga desse homem na busca por salvar essa garota sendo que ambos só se encontram em dois momentos específicos é o que distingue esta obra das demais que o gênero contempla.
Ou seja, o sentido que o longa evoca só se completa pela leitura e interpretação que dele fazemos. É claro que, para o bom cinema, esse interpretar rompe os limites do próprio filme. Dentro dele, vale o exercício de revisão, seja para efeitos dos seus sentidos ou àqueles ligados a seus aspectos técnicos, como por exemplo, a relação entre a montagem de Joe Bini, a fotografia de Thomas Townend e a música de Jonny Greenwood (Radiohead). As possibilidades do modo de vê-lo são exponenciais não se esgotando em si mesmas. E isso nos leva, por fim, à figura de Lynne Ramsay.
E sim, precisamos falar sobre a determinância de termos cada vez mais espaços para diretoras desenvolverem seus trabalhos no cinema. Nossa arte precisa disso. Na verdade, depende muito. Ainda mais em um cenário onde visivelmente o espaço para a mulher se afirmar como realizadora ainda é tão incipiente. São vários os desafios travados que passam pela não aceitação dentro da própria indústria, sobretudo no mainstream. Mas para quem leva a vertente do cinema independente como regra, essa pode ser uma grande aliada pela versatilidade e liberdade no trato das produções. A mulher precisa estar sim no cinema, e mais que isso, é o cinema que precisa incondicionalmente da figura da mulher no seu seio e Você Nunca Esteve Realmente Aqui é um importante ponto de inflexão nisso.
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