Direção: Apichatpong Weerasethakul . Roteiro: Apichatpong Weerasethakul, Phra Sripariyattiweti. Produção: Holger Stern. Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom. Efeitos Visuais: Francis Alloncle. Montagem: Lee Chatametikool.
Uma das críticas mais contundentes que podemos fazer sobre o cinema autoral da contemporaneidade diz respeito ao traço assumido nessas narrativas. É claro que, no exercício da realização, o artista pode partir daquilo o que ele presume ser seu maior interesse. Falar do lugar de onde ele parte, entretanto, parece-nos no atual contexto, um lugar quase inequívoco àquele que constrói estórias por meio de imagens e sons. É deste ponto que Apichatpong Weerasethakul idealiza a composição das suas tramas tão particulares.
Falar dessa construção é importante porque aqui, o realizador é autor não apenas por idealizar e estruturar mundos e personagens. Mais que isso, filme a filme, ele recombina recortes de um fazer que se estrutura ao longo do tempo e a cada nova obra. No caso de Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas (2010), Weerasethakul segue essa investigação sobre os seus próprios processos de feitura fílmica. Como um autor que inicia uma produção sistemática a partir dos anos 2000, ele tem no experimento das possibilidades do gênero seu ponto de partida.
Nessa caminhada pelo formato do longa-metragem, há uma propositiva indefinição nesse limites da matéria fílmica. Voltando - nos para o prólogo de Tio Boonmee, a impressão é de estarmos diante de um documentário contemporâneo. Numa região rural da Thailândia, vemos um grande boi pastando ao pé de uma árvore. Perto dali, uma família de camponeses prepara alguns alimentos ao pé de uma fogueira. A ideia de uma construção de cena se dilui totalmente. Nessa conjuntura, tudo é possível.
Essa possibilidade, nada tem a ver, no entanto, com um fazer audiovisual aleatório. Há toda uma gama referencial aqui incapaz de deixar o filme esgotar-se em si mesmo. Ao longo das suas 1 hora e 53 minutos, a obra nunca soa desacreditada em relação àquilo o que ela se propõe discutir. Para acessarmos às informações discutidas, pressupõe-se esse olhar pregresso e aberto à dinâmica de imagens que, da mesma forma, não acabam-se em si mesmas.
É preciso entendermos que, o índice do esoterismo desse sétimo longa metragem do realizador thailandês, precede toda uma investigação que atravessa toda a sua filmografia, iniciada ainda em 1993. Antes desse tópico fantástico, sobrenatural e místico - já que Tio Boonmee faz comentário sobre a imortalidade e a mortalidade das figuras terrenas e espirituais - o filme joga com essa costura entre o que é forma e conceito fílmicos. No curso de um fazer contínuo, Apichatpong seguira a marcação de uma realização que comunga tudo o que há de mais potente no cinema narrativo e experimental.
Ele não opta por uma lógica excludente. Ele adota a soma como perspectiva de uma cinematografia empática. Essa procura, entretanto, parte muito de um desejo autêntico do tensionamento com o outro estabelecido no mundo. O humano aqui, não figura para ser um elemento de conflito, por exemplo. E mesmo diante da figura de um monstro, esse quadro hiperrrealista não se desfaz. Ele se fortalece e segue adiante. Logo, nos vemos diante de um novo capítulo da estória. Essa é a coragem do ato de realização. É o não temer que o espectador possa vir a saltar da trama até então proposta.
Esse é um dos índices de independência da realização cinematográfica. Lembro-me bem da sensação de estranhamento que senti ao assistir Tio Boonmee pela primeira vez. Era 2012 e minhas referências limitadas, reconheço. Havia um investimento imenso de minha parte em estar diante desse cinema, mas algo de inacessível me impedia de ir além da obra. O que eu não entendia, há época, era que esse questionar-se era a gênese de toda a potência da nossa experiência com esse modo de filme.
Ele não está ali para que possamos decifrá-lo, desvendarmos ou pior...explicá-los. Todos esses movimentos apontam para um esgotamento claro, tanto da nossa capacidade de lidar com as obras quanto das próprias obras diante do mundo. Desse perigo, o fazer de Apichatpong está liberto. A zona artística, em tese, nunca está protegida (ou seria ameaçada?) em uma zona de conforto perene. E essa talvez seja a condição ideal para a concepção e manutenção de um fazer audiovisual que se recusa a maquinizar-se.
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