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Tempo de Cavalos Bêbados: proposições narratológicas para um novo milênio


Direção: Bahman Ghobadi. Roteiro:Bahman Ghobadi. Produção:Bahman Ghobadi. Fotografia:Saed Nikzat. Montagem: Samad Tavazoee. Música:Hossein Alizadeh. Direção de Arte:Bahman Ghobadi.


Há um limite muito delicado no ato de representação adotado pelo cinema. O gesto de reencenação muitas vezes pode guiar o tom de uma obra pelo tortuoso caminho da falta de originalidade ou precisão das narrativas contadas. Em “Tempo de Cavalos Bêbados” (2000), esse exercício dramatúrgico opera como um ato de mágica, onde não atores encarnam figuras inseridas em um contexto de extremas dificuldades no campo da geopolítica e das relações sociais. Escrito e dirigido pelo realizador iraniano Bahman Ghobadi, este longa metragem impressionante conta a estória de três jovens irmãos curdos iranianos em uma tentativa de salvar a vida do irmão mais velho, Madi (Madi Ekhtiar-dini), que se encontra gravemente doente. Ao mesmo tempo, os jovens buscam sobreviver sozinhos ao lado dos indiferentes e ríspidos familiares próximos. Apesar da atmosfera dramática que serve de base ao filme, em nenhum momento a obra tende a qualquer supervalorização desse coeficiente dramático. O impacto que Ghobadi busca nos causar vem muito mais de uma simétrica junção entre o índice técnico-fílmico e seu coeficiente temático, muito envolto em um circuito eminentemente trágico. Há determinados segmentos do longa em que essa organização se evidencia fortemente. Seja pelos risos que essas crianças compartilham em momentos pontuais de alegrias efêmeras, ou em situações de “respiro” na representação da rotina desses personagens. A sequência em que o líder da família, Ayoub (Ayoub Ahmadi), vai a um pequeno comércio para tomar algo durante uma pausa no trabalho retrata isso fortemente. Ele é servido por outro garoto, que assim como ele, parece assumir um protagonismo da própria vida por ter sido, provavelmente, instigado a fazê-lo de um jeito ou de outro. A conversa é absurdamente fluida, natural e pragmática. O que nos leva a outro ponto determinante no filme. O naturalismo com que Ghobadi desenvolve a estória soa quase como que na dinâmica de um documentário. Na verdade, a obra parte desse fluxo, já que Tempo de Cavalos Bêbados é o desdobramento direto do documentário "Zendegi das meh" (1999). Aquele não chega a ser, por isso, um remake deste, mas uma concepção aperfeiçoada de maneira singular. Em seus 80 minutos, tudo o que vemos na tela soam suficientes para dar conta da narrativa que acompanhamos. Não há excessos conteudísticos (temáticos) ou formais (técnicos). E assim como toda boa obra contemporânea, as lacunas que o filme deixa são o debate que intuímos quando os créditos sobem à tela. De fato, um dos principais tópicos que definem a posição do artista contemporâneo pode ser tomada pela sua capacidade de não subestimar o espectador. O que ocorre com Ayoub e seu irmão, Madi (Madi Ekhtiar-dini), ao atravessarem a fronteira com o Iraque não interessa, verdadeiramente. Isso não significa dizer que ela não seja importante. Ela é vital ao filme por ser um subtexto mais poderoso inscrito nele. Tudo ocorre no entorno da situação conflituosa entre curdos e iraquianos. Mas esse mote está sublinhado em toda sua força e de um modo, por exemplo, com que os jornais televisivos jamais conseguirão fazer. O descolamento do cinema a partir daquilo o que a televisão é, emerge dai. E esse é um ponto de defesa definitivo que o ato cinematográfico deve ser valer, sempre. A exploração do drama humano é uma inscrição da TV. A reflexão na representação dessa condição e a sensibilidade de recriar esse universo pelos olhos e presença das pessoas que vivem isso, esse é o legado que a arte do cinema deixa no mundo. Por isso que essa proposta Neo-Realista desse início de século XXI é tão marcante. Ela aponta caminhos para o cinema do futuro, olhando pelo retrovisor das escolas do passado. Sua reafirmação baseia-se em um respiro referencial de revisão e proposição de novos olhares a partir dos dilemas que nos são caros na contemporaneidade. As guerras nos são caras. A violência nos são caras. Mas a crença em um espírito de solidariedade mínima entre homens também nos são janelas perspectivas. Muito provavelmente por isso é que devamos olhar para Tempo de Cavalos Bêbados não como mais uma tragédia cinematográfica de um novo milênio. Ele pode ser uma carta sincera sobre as intenções de um cinema que se percebe contemporâneo por entender a preciosidade de se contar a narrativa desses personagens a partir de uma construção pautada na sensibilidade e empatia àquilo o que significa ser humano em um mundo cada vez mais polarizado e imerso em complexas contradições. isto posto, entendemos estar diante de uma obra-prima recente.




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