Direção: Luca Guadagnino. Roteiro: David Kajganich. Produção: Carlo Antonelli, Dario Argento. Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom. Montagem: Walter Fasano. Música: Thom Yorke
O ato de se fazer um remake dentro da experiência do cinema evoca um sentimento de dubiedade muito grande e entre tantas questões que o refazimento de um filme nos traz, a linha tênue entre o êxito e o fracasso parece estar sempre a um passo de ser rompida.
Mas quando essa cisão ocorre positivamente, ou seja, quando os elementos do filme original são referenciados e potencializados na obra que o relê, ambas as obras partilham de um frutífero instante que diz muito sobre a riqueza do cinema de ontem e de hoje. É nesse contexto que projetos como “Suspiria” (2018) aparecem.
Releitura do clássico Suspiria (1977) dirigido por Dario Argento, a trama conta a estória de Susie Bannion (Dakota Johnson), uma jovem americana que vai à Alemanha estudar em uma prestigiada escola de Balé. Em meio a recentes conflitos políticos na Europa dos anos 1970 e estranhos eventos sobrenaturais que ocorrem na companhia de dança, o destino da dançarina, sua tutora Madame Blanc (Tilda Swinton) e de um psicoterapeuta em Luto, Dr. Josef Klempfer (Tilda Swinton), irão tragicamente se encontrar.
É importante destacar que em seu 10º longa-metragem, o italiano Luca Guadagnino parte das premissas do filme original de Argento para nos contar uma narrativa semelhante, mas não igual. E isso faz desse Suspiria um trabalho distinto. Em uma época onde as refilmagens evidenciam uma certa crise de criatividade dos estúdios e criadores no cinema, refazer para se repensar códigos de uma obra original é um ato de coragem, até.
Neste filme, entretanto, há uma benvinda sensação daquela narrativa que se deriva de algo já contado, mas que parte de códigos próprios para experimentar novas abordagens, seja em termos de dramaturgia ou de estética e forma fílmicas. Primeiro, vale ressaltar a importância de o longa não negar-se enquanto cinema de gênero. Estamos diante de um terror e o seu primeiro ato coloca essa linha de modo claro.
Em uma espécie de “dança da morte”, por exemplo, vemos o assassinato de uma personagem, que é literalmente despedaçada, a partir dos movimentos e coreografia feitas por uma outra dançarina que treina em um diferente cômodo da mesma escola de dança. Tempo e espaço se fragmentam para nos dizer que o sobrenatural reside ali e, logo, o terror impera neste local. Apesar dessa assertividade do filme em transparecer essa abordagem, ele não a fetichiza, interessando-se mais em outras possibilidades narrativas.
Uma delas é por meio da construção de uma atmosfera de medo e tensão a partir daquilo o que é som e imagem. O rangido de uma porta que se abre, um grito que corta um corredor escuro e os suspiros que embalam pesadelos na noite são exemplos de como Guadagnino usa os recursos sonoros para imprimir tensão em diferentes cenas do longa. A música assinada por Thom Yorke complementa uma abordagem onde o som orquestra uma dinâmica de estranhamento a partir de uma trilha sonora que em muitos momentos se aproxima de O Exorcista (1973), por exemplo.
Na representação desse terror pelas imagens é que Suspiria ganha autenticidade sobretudo a partir do trabalho entre a fotografia de Sayombhu Mukdeeprom e a montagem de Walter Fasano. Muito se discute sobre o peso dos maneirismos de alguns diretores contemporâneos, entre eles o do próprio Guadagnino. Mas a estetização dos planos neste filme surge como um recurso que opera em favor da estória contada. Na verdade, ela depende em muito disso.
Uma vez que, sem essa perspectiva estilizada, Suspiria seria apenas um filme de terror onde a prerrogativa do sobrenatural inevitavelmente entraria em conflito com suas variações tonais naturalistas. Como o escopo do longa descende de algum naturalismo, principalmente considerando sua dramaturgia, entendemos uma valorosa mediação entre a plasticidade e o “realismo” das representações no filme. E quando falamos desse índice do real, o clímax da obra reafirma isso de modo bastante literal.
Assim, o gore e todo o grafismo do cinema de gênero, como afirma a cartilha o Slasher Movie, é colocado em primeiríssimo plano. Interessante notar o quanto o longa usa esse recurso muito pontualmente em três momentos bastantes específicos. Mas em seu clímax que a estória se abre diante dos nossos olhos nos dizendo sobre o que ela é de fato: uma abordagem graficamente brutal sobre as vertentes do terror costuradas por uma chave perceptiva que nos faz pensar sobre quais as interpretações possíveis do mal.
Diferentemente da obra original, este Suspiria busca problematizar a natureza desse mal. Ele nos convida a olharmos para a figura do sobrenatural a partir de uma perspectiva ousadamente naturalista, uma vez que mesmo essas personagens obedecem e acreditam em determinados códigos de honra que regem as suas relações. E o personagem que no clássico de George Romero seria apenas uma válvula de representação unidimensional do terror, aqui, ganha camadas.
Afinal, Susie Bannion pode ser vista como uma das herdeiras de uma instigante e recente tradição do terror como gênero a exemplo de outros expoentes como A Bruxa (2015), A Ghost Story (2017) e Hereditário (2018). Afinal, em cada uma dessas obras, o mal é problematizado como um ponto de inflexão de uma sociedade em dissonância, repleta de questões por resolver.
O estranho se materializa no filme pelas reflexões sobre o peso dos traumas e das dores que devemos enfrentar ou assumir para o alcance de algum conforto. Ele pode ser um beijo de morte feito como um último pedido de uma personagem amaldiçoada. Pode ser a redenção tomada pelas mão daquela figura que há 40 anos era representada apenas como uma maléfica e destrutiva. Suspiria (2018) de Luca Guadagnino mostra que as coisas não são bem assim nas lentes do cinema de horror contemporâneo.
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