Direção: Rogério Sganzerla. Roteiro: Rogério Sganzerla. Fotografia: Edson Santos. Som: Guará Rodrigues Música: Luiz Gonzaga. Montagem: Rogério Sganzerla, Júlio Bressane.
É realmente notável o salto que a cinematografia brasileira dá no intervalo de tempo que compreende o período de 1950 a 1970. Na interseção entre essas duas décadas, as janelas interpretativas na nossa arte do filme se expande de modo notável. Parte desse movimento encontra na filmografia do Cinema Marginal brasileiro um dos seus representantes de maior valor.
Partindo da particular arte e olhar de Rogério Sganzerla, o Brasil experimenta uma espécie de proposta verdadeiramente soberana na proposição de se contar estórias por meio de imagens e sons. Dentre tantos trabalhos que emergiram nessa rica década artística, “Sem essa, Aranha” (1970), emerge como um dos mais sólidos, notáveis e inesquecíveis projetos da nossa historiografia.
Iconoclasta, provocativo e inovador, o longa vai ao encontro, não do rompimento total com qualquer tradição nacional, até então estabelecida. Não estamos diante de um filme de confronto. Ele nos interroga em inúmeros momentos, mas nunca se apresenta de modo auto impositivo. As possibilidades de interpretação são vastas, quase infinitas. Quem é Aranha (Jorge Loredo)? O que quer esse protagonista? E seria ele uma figura de protagonismo ou de vilania?
Isso não está dado no filme, o que é ótimo! É a partir disso que Sganzerla confronta o espectador diante da tela. Se esse homem é um indivíduo, como pode ele interpretar três personas de si mesmo? Afinal, ele é Aranha, é Zé Bonitinho e também é ele próprio, Jorge Loredo. Como um deus cristão, ele é três em um só. Difícil de compreender isso, não é?! Esse é o jogo dessa cinematografia de transição. Que parte de um desejo de rompimento, antes de tudo.
Se esse herói não possui identidade definida, então, sequer conseguimos estabelecer com ele algum laço de identificação inconsciente. No fundo, parece ser isso o que o autor deseja. Essa multipersonalidade de Aranha é mais um índice do caráter transmutacional e fagocitário da obra. De um trabalho que se elimina a si próprio para logo em seguida surgir como uma outra partícula desse processo.
Falar dessa estrutura é importante porque, apesar do tom de improviso e descompromisso estético, Sem Essa, Aranha parte de um minucioso estudo técnico-conceitual. Ao todo, o filme é composto por aproximadamente oito sequência, cada uma delas com duração de cerca de 10 minutos.Para a tecitura desse fluxo, é interessante notar que Sganzerla busca a investigação na dinâmica entre esses corpos e espaços.
Mesmo sendo eles internos ou externos, sempre se atesta uma proposta de representação terceiro mundista e subdesenvolvida de um país perfectivo, não porque tenta ser perfeito, mas porque parece estar engessado mesmo em uma impossibilidade de ser algo maior do que as imagens testemunham. “Onde que tá o Brasil”, “Tá fora do mapa”, coloca o diálogo entre duas personagens em determinado momento do filme. A linha revela a ideia desse buraco que nos separa do restante do mundo.
A crítica tende, usualmente, vir justaposta a essa reflexão abstrata. Por isso que apesar de se apresentar como um projeto narrativo, o longa deságua nessa proposição ultra complexa a partir do modo como ele escolhe fazer uso das suas representações alegóricas. Isso é levado às últimas consequências quando analisamos a natureza de cada um desses imensos blocos narrativos de que ele é constituído.
A câmera segue esses personagens até o instante em que aquele fluxo se esgota por completo. Aranha, sua amante (Helena Ignez) e a mulher que sente fome (Maria Gladyz) descem uma rua de um morro na periferia do Rio de Janeiro. No início da cena, apenas eles. Logo, o quadro vai se preenchendo. As vozes dos personagens iniciam uma transfusão com os ruídos desse ambiente externo e incontrolável. A sequência dura até o momento em que nada mais parece estar para ser dito ou exibido em tela. Corta.
E a exemplo de Jean Renoir (1894 - 1979) e Alfred Hitchcock (1899 - 1980), Sganzerla compreende a riqueza contida nessa dinâmica dramatúrgica. Nesse circuito cênico que se desvela na frente do espectador sem que ele se dê conta disso. Em gradação, as camadas de cada um desses imensos planos que constituem a unidade total do filme são montados por camadas. Atores, não atores, animais e objetos de cena são igualmente fagocitados pela obra.
É claro que há muitos, mas muitos outros elementos que dão a forma e consistência final dessa obra-prima da nossa cinematografia. Precisaríamos de uma crítica inteira para falarmos apenas da significação e simbologia no uso da música dentro do filme, por exemplo. Daí dimensionamos quão imenso esse trabalho é. É desse indicativo que entendemos também a sua relevância na nossa historiografia, pela honra e glória do espírito marginal e heróico brasileiro.
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