Direção: Luca Guadagnino. Roteiro: Justin Kuritzkes, William S. Burroughs. Montagem: Marco Costa. Direção de Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom. Produção: Marco Morabito, Luca Guadagnino, Zachary Fox. Som: Craig Berkey. Direção de Arte: Biagio Fersini. Música: Trent Reznor, Atticus Ross. Design de Produção: Stefano Baisi.
Se tem algo que podemos afirmar a respeito do estilo de cinema de Luca Guadagnino é o de que suas obras partem de um prolífico campo que não teme o sincretismo do pop com uma ala mais austera cujos referenciais tomam corpo, muitas vezes, de extratos de uma cinematografia art house.
Interessante como os excessos, aqui, jamais pendem para uma abordagem tola ou ingênua no trato com a experiência do gênero. Dividido em capítulos, o filme se permite ser quase que na sua totalidade, certamente com exceção do seu epílogo, um mixer de inúmeras variações de obras pautadas em distintas linhas temporais.
Por se tratar de uma heterotopia, não há, também, nenhum estranhamento no modo como as marcas do tempo se entrecruzam pelo caminho. A relação não é necessariamente de correspondência, mas talvez de interrelação.
E aí a música, extradiegeticamente falando ou não, ou estando ou não ligada à realidade do filme, é manifesta enquanto uma parte da forma como a estória é contada. Porque podemos estar em algum período entre os anos 1950 ou 1960, mas isso não nos impede de vermos (um personagem cruzando uma rua durante uma inquieta noite mexicana) e ouvirmos (uma canção de grunge dos anos 1990) num estado de interposição temporal e experimental nas suas próprias medidas.
Tudo está de acordo com o que a melhor cartilha da expressão de uma cinematografia pop poderia nos recomendar. Não é apenas sobre ter uma música legal, marcante em determinado segmento, mas muito mais sobre o modo como esse constructo organiza a dinâmica daquele momento no filme.
São modulações de uma cinema contemporâneo que se permite elaborar-se para além de um realismo aficionado à noção fidedigna do que viria ser a representacionalidade do mundo, ou o que quer que isso seja no campo das artes. Guadagnino não tem tempo para isso.
Há uma estado de entendimento tão apurado em relação a isso que o filme não se permite não ir senão adiante. Antes mesmo de um thriller erótico, dá-se uma reflexão sobre a busca. A procura de si mesmo, desse outro que pode estar ao alcance ou distância de um olhar, uma palavra, um toque.
Sentir as coisas da/na vida desses personagens passa por isso, sobretudo. Quando foi a última vez que você viu um filme onde suas figuras não predem um milésimo de segundo do tempo da narrativa com discussões sem sentido e picuinhas extenuantes?
Pois é. O dinamismo e maturidade da escrita Guadagniana também poderia e passa por isso. Não há um só instante do filme que esses homens não estejam empregando suas energias e forças vitais em função daquilo o que realmente interessa a eles: viver em função do que importa.
E ainda que a errância se estabeleça um dado que os atravesse em algum momento que seja, há um ponto onde a rota pode ser refeita. A vida segue seu curso. Nas múltiplas noite do caçador, os alvos podem ser homens descompromissados e chamados para uma aventura.
Pode ser a carne humana naquilo o que ela venha a ter de mais complexo e desejante, mas também pode ser um McGuffin que dirija os personagens rumo a alguma missão no coração da América do Sul.
Interessante como tudo isso reorganiza o nosso entendimento sobre o fato de o filme não ser somente sobre a conduta ou a respeito das desventuras homossexuais num determinado período de tempo ou dentro dessa própria noção heterotopeizante de um tempo sem escalas ou dotado de referências cruzadas, do ontem e do hoje, do antes e do depois.
Há muito cinema investido aqui. Tanto por parte de tudo o que Guadagnino relê (da miríade referencial que vai de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) a Apocalipse Now (1979), passando pelo cinema surrealista de Dali), até o cruzamento de tantas outras referências mais contemporâneas.
A era Craig na MGM, por exemplo, é como uma espécie de bálsamo de onde o diretor vai relapidando códigos e jogando dados sobre uma desconstrução da narrativa de espionagem contemporânea. Ele parte, nesse sentido, de um momento muito específico em Skyfall (2013), por exemplo, onde Bond insinua que já teria tido experiências homossexuais antes. E se Bond envelhecesse como um novo homem aberto para uma outra abordagem na experimentação da sua sexualidade?
Guadagnino até não deixa todas as respostas dadas na mesa por entender que a potência do jogo cinematográfico é esse entrelugar, dessa espécie de fissura onde todas as imagens não dão conta daquilo o que a obra parece querer mostrar e nem todas as situações parecem ser suficientes para o desenvolvimento do evento naquilo o que ele possa vir a ter de mais potente.
Nada fica pelo caminho, essa é a verdade. Mas algumas dobras de cortinas ficam asteadas antes que o último fade out entregue a conclusão da narrativa. Lindo demais.
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