Direção: Mary Harron. Roteiro:Mary Harron. Guinevere Turner. Montagem: Andrew Marcus. Direção de Fotografia:Andrzej Sekula. Produção:Michael Paseornek. Direção de Arte:Andrew M. Stearn. Música:John Cale. Design de Produção: Gideon Ponte.
Assim como em vários países ao redor do mundo, a passagem do século XX para o XXI foi marcada por uma série de obras paradigmáticas. Na América do Norte não foi diferente. De Matrix (1999) a eXistenZ (1999), passando por Uma História Real (1999) a Clube da Luta (1999), fomos apresentados a filmes paradigmáticos na passagem para esse novo milênio. Um desses filmes é Psicopata Americano (2000).
A obra é uma adaptação do livro “Psicopata Americano” (1991) de Bret Easton Ellis e acompanha a vida de Patric Bateman (Christian Bale), um rico executivo bancário que atua no mercado financeiro de Nova York. Em sua rotina diária, o jovem yuppie* esconde seu ego psicopata alternativo de seus colegas de trabalho e amigos durante o dia enquanto se aprofunda em suas violentas fantasias hedonistas à noite.
Apesar de adaptar um romance, o longa ultrapassa uma importante barreira que define bastante o filme enquanto experiência autônoma. A obra audiovisual parte de um meio outro que é a literatura, mas dela não depende única e exclusivamente. E nos parece que, nesse caso, a cinematografia romper a escala da fidedignidade ou não com o livro é um caminho de grande potência àquilo o que o cinema pode ser. Mary Harron entendeu bem esse jogo.
Ela assinou o roteiro adaptado junto com a roteirista Guinevere Turner e trabalharam alguns elementos-chave nessa alternativa ao exercício do cinema como uma máquina de reproduzir na tela obras literárias. Um desses pontos é a atmosfera de deslocamento em torno de toda a narrativa do filme. Ou seja, assistimos a uma estória ambientada nos anos 1990, mas que emula muito uma obra dos anos 1970 a partir de um filme realizado no ano de 2000.
É desse caráter narrotológico intertemporal que Psicopata Americano parece dar conta. Logo, estamos além do universo onde a lógica adaptativa opera. Obviamente isso está longe de ser um problema. Temos clássicos incontestes como Grandes Esperanças (1946) de David Lean ou mais recentemente “Adoráveis Mulheres”, 2019, de Greta Gerwig. A questão é o traço inventivo que dota a experiência do filme de originalidade e autenticidade.
Parte desse traço é refletido no modo como a violência é inserida na obra. O mais interessante é o fato de ela vir de uma forma não figurativa. Não há uma intenção de superexpor esses momentos do filme, mas sim, na intenção de criar instantes de tensão que nos ajudam a entender um pouco melhor Patric e suas ações. A sequência do assassinato de Paul Allen (Jared Leto) ilustra bem isso. É um dos momentos mais complexos e impactantes do filme. Vamos analisá-lo.
A construção da cena é bem direta. São dois personagens em uma única locação e um desses homens mata o outro a machadadas. Há o terror, o sangue e a imprevisibilidade contida nos códigos que o cinema de gênero e mais especificamente, o thriller, partilham há anos. Mas são nos detalhes que Harron imprime o elemento distintivo do seu filme. Ao invés de mostrar o corpo que se despedaça, ela nos dá o extracampo. O foco do nosso olhar reside nesse instante de protagonismo desse antagonista que nos imobiliza ao mostrar do que ele é capaz.
Devemos temer essa figura, apesar de ele estar inserido, todavia, em uma outra rede significativa da qual Psicopata Americano se constitui. Falamos da sua inconvencional variação tonal cômica, por exemplo. Mas não se trata tanto de um traço variado de humor, e sim escárnio mesmo. Esses homens e mulheres que habitam a Wall Street oitentista são ridículos.
A sequência da troca de cartões de visita é um exemplo disso. Reunidos, os executivos, entre eles, Patric, analisam os pequenos cartões. Eles comparam-se a partir das características estéticas e de design dessas credenciais. Aqui, é o absurdo que se instaura para nos mostrar a vertente descartável dessas figuras. Nesse momento, não podemos levá-los a sério. E isso nos leva a um terceiro e mais sólido ponto desse longa, que é o seu característica enquanto um trabalho concebido muito autocoscientemente.
Ele só consegue ser um slaher movie, um thriller, uma comédia de humor negro e um drama, porque todas essas camadas não estão entrepostas uma a outra. Elas são complementares. Cada uma dessas ramificações genéricas abrem espaço para essa construção complexa no qual o filme se completa. A tragédia de Bateman não é ele ser quem ele é. Mas sim estar inserido em um mundo onde ninguém o vê, escuta ou pode ajudá-lo. Sozinho, ele chora. Assim como Jonh Rambo (1982) se desespera por não saber o que fazer com aquilo o que ele é.
Diante desse quadro, entendemos estar diante de um projeto que está além da experiência do gênero. E isso muito em função do controle que ele tem de si mesmo. A figura da autoria, assumida aqui por Mary Harron e Guinevere Turner, são fundamentais nesse direcionamento.Apesar de adaptar o livro, entendemos estar diante de uma obra altamente original. O que é curioso, porque mostra o quanto o cinema é uma arte que goza da sua autonomia. Liberdade essa justificada por sua gramática e códigos próprios. E filmes como Psicopata Americano nos ensinam isso brilhantemente.
*"Yuppie" é uma derivação da sigla abreviatura de "Young Urban Professional" é um termo anglófono] cunhado no início dos anos 80 para um jovem profissional que trabalha em uma cidade, ou seja, Jovem Profissional Urbano.
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