Direção: Bertrand Mandico. Roteiro: Bertrand Mandico. Montagem: Laure Saint-Marc. Direção de Fotografia: Pascale Granel. Produção: Emmanuel Chaumet, Mathilde Delaunay. Efeitos Visuais: David Scherer. Música: Pierre Desprats.
Poderia o cinema encontrar um ponto de equilíbrio entre a sua linguagem e as intenções ideológicas que lhe são próprias a partir de cada obra? Esse é um debate riquíssimo que nos ajuda a refletir sobre as razões de ser de cada filme, além de nos permitir um olhar um pouco mais aprofundado acerca das suas intenções entre aquilo o que é ideologia e o que é a sua forma/linguagem. Entre esses trabalhos que adotam uma clara intenção de modular esses conceitos, podemos destacar obras como o visionário “Os Garotos Selvagens” (2018).
Escrito e dirigido pelo inventivo e visionário realizador francês Bertrand Mandico, o longa se passa no início do século XX, e conta a estória de cinco jovens arruaceiros que cometem um crime na ilha de Réunion. Condenados por seus atos, eles são enviados por seus familiares à misteriosa ilha de Nenhures e ficam sob os cuidados e métodos repressivos de um enigmático capitão holandês (Sam Louwyck). Juntos, eles terão de lidar com os perigos desse misterioso lugar ao mesmo tempo em que organizam um plano de fuga dessa complexa situação.
Em um primeiro momento, o filme pode causar um certo estranhamento, sobretudo às pessoas que não estejam muito acostumadas a um contato com o cinema de origem mais experimental. Esse é um experimentalismo se revela tanto em termos de forma quanto de conteúdo. Mas mesmo para um público pouco iniciado a esse estilo de narrativa cinematográfica, vale a pena permanecer diante dessa obra mesmo após seus 15 primeiros minutos. Falar desse tempo de permanência é importante porque Os Garotos Selvagens é um trabalho que, de certa forma, tenta desafiar o olhar do seu espectador. Como ele faz isso é a parte mais interessante dessa análise.
De início, pode-se afirmar que esse é um filme cuja carga ideológica está potencialmente carregada em cada uma de suas sequências. Há pelo menos, duas correntes antagônicas que o longa trabalha. Uma, ligada à força e poder destrutivo da juventude, aqui encarnadas nas figuras dos cinco garotos: Romuald (Pauline Lorillard), Jean-Louis (Vimala Pons), Hubert (Diane Rouxel), Tanguy (Anael Snoek), e Sloane (Mathilde Warnier). E outra corrente, ligada aos mistérios e influências que o prazer exerce sobre essas figuras e àqueles que os rodeiam.
Geralmente, falar do desempenho e mesmo da existência do elenco de um filme diz muito de alguma falta de substância para a argumentação crítica. Mas no caso de uma obra como Os Garotos Selvagens, destacar essas personas é definitivo para a consistência da análise. Porque o filme, em si, depende dessas figuras para se tornar o que ele é: uma obra única sobre o poder transformador que a consciência do gênero pode desempenhar em uma sociedade ideal, se assim a quisermos, é claro. Logo, essa brecha interpretativa e quase fabular que Bertrand Mandico cria, abre mão de um possível tom reacionário – ainda cuja intenção seja progressista – para nos dizer da consciência de um mundo utópico.
A ideia de utopia aqui, nos parece muito mais ligada à corrente de pensamento de Thomas Morus acerca daquilo o que “ainda não é” e não do que é impossível de ser feito ou vivido. Portanto, a transformação por que esses cinco personagens passam é o grande tema do filme. E nosso deslumbramento é vermos como essas figuras lidam com a metamorfose que as ocorre. Nós temos um filme dividido em três atos onde no primeiro conhecemos nossos 5 protagonistas desajustados e vemos sua ida em detenção para a misteriosa ilha de Nenhures. O segundo ato desenvolve a relação deles com esse ambíguo lugar e no seu último e terceiro ato somos testemunhas da metamorfose a que eles passam e em como isso mudará para sempre suas perspectivas diante de um novo mundo que se abre aos seus olhos.
Por isso Os Garotos Selvagens é um filme sobre transformação. Sobre mudanças de prismas, seja no nível ideológico (associadas às visões que o diretor trabalha), seja na esfera do filme em sua forma (relacionadas às experimentações e referências que as imagens e os sons da obra revelam). É muito impressionante, por isso mesmo, a maneira como o longa consegue unir as vertentes de um cinema que é narrativo em sua essência, junto a um tom de uma cinematografia mais iconoclasta e experimental contemporânea. Ele prova que a arte do filme pode ser o que ela quiser partindo de tudo o que já foi feito. Prova que sua reinvenção é possível quando consideramos o cinema um instrumento, não de alienação ou maniqueísmo, mas sim uma partilha de pontos de vista.
E se tudo o que as artes cinematográficas nos mostram desde 1895 (A Saída dos Operários da Fábrica Lumière), até os experimentos com as videoinstalações a partir da gramática do cinema expandido, o que Bertrand Mandico propõe é uma visão realmente unitária e complementar da experiência do filme. Há na sua obra a afirmação de uma trama, ou uma estória a ser contada. Bem como a sobreposição de uma estrutura que ultrapassa as convenções do cinema clássico narrativo, por exemplo.
Vemos uma sequência que se inicia a partir de uma construção de cena convencional, em um cenário captado por uma câmera frontal. Nela, vemos os cinco arruaceiros que serão julgados por um crime que cometeram. À medida que o tempo avança, um dos personagens contidos nessa construção cênica, no caso o procurador (Christophe Bier) se revela uma espécie de projeção.
Ou seja, o ator não estava ali presente, mas sim projetado por sobre uma tela dentro daquele espaço. Esse é o cinema que parte de tudo o que ele já é, em sua tradição narrativa, para se repensar naquilo o que ele pode ser daqui para frente. E testemunhar isso é perceber o quanto nossa arte ainda resiste, na verdade, é vê-la morrer e reconfigurar-se pelas nossas próprias mãos, seja daqueles que a realizam ou daqueles que a presenciam.
E se o futuro é a mulher, como profetiza a personagem de Dr. Séverin(e), então Os Garotos Selvagens seria de fato uma eulogia ao feminino e toda sua forma de representação. Por isso os frutos, a abundância e fertilidade da natureza, bem como o chamado final ao protagonismo da mulher e da ironia no enfrentamento de um mundo cada vez mais endurecido são usados como diretrizes das ideias que o filme trabalha ao longo dos seus 110 minutos de duração. Uma produção que certamente já entra como sendo uma das mais significativas já realizadas no contexto das nossas obras contemporâneas.
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