Direção: Pedro Diógenes, Ricardo Pretti, Luiz Pretti. Roteiro: Pedro Diógenes, Ricardo Pretti, Luiz Pretti, Francis Vogner. Montagem: Clarissa Campolina. Direção de Fotografia: Ivo Lopes. Produção: Ticiana Augusto, Caroline Louise. Direção de Arte: Thémis Memória. Música: Daniel Medina, Uirá dos Reis.
2019. O Brasil vive um dos piores momentos da sua história nos últimos 20 anos. E entre governos destituídos, figurativos e autoritários, a política tem pautado nesse mesmo intervalo de tempo uma leva de filmes nacionais que tem repensado essa problemática conjuntura de forma bastante crítica e assertiva. Partindo de uma proposta do filme multigênero, cuja transitoriedade vagueia entre a ficção e o ensaio, é que a realidade sombria de um país que convulsiona desde 1500 contundentemente afirma-se em um trabalho como “O Último Trago” (2016).
Dirigido por Pedro Diógenes, Ricardo Pretti, e Luiz Pretti, o longa conta a história de Valéria (Samya de Lavor), uma mulher que é encontrada à beira de uma estrada e que incorpora o espírito de uma guerreira indígena desencadeando uma série de eventos que atravessam tempo e espaço. Do litoral ao sertão nordestino, séculos de lutas de dominações e resistência serão travadas em um universo pautado pelo medo e a alegoria.
A iconoclastia, que aqui também pode ser entendida como a ideia do filme que problematiza a vida e a própria arte enquanto ato feito essencialmente para a partilha de afetos, marcou grande parte das obras assinadas pelo coletivo Alumbramento. Em O Último Trago, esse sentido alegórico é a matéria prima que conduz o longa em seus 93 minutos de duração. Além dessa intenção manifestada quase como que um esforço de negação da imagem e do conceito do cinema em sua perspectiva clássico-comercial na contemporaneidade.
Mas a contradição é igualmente um elemento fundamental na obra. Pois aqui, temos uma cinematografia que ao mesmo tempo em que resiste a esse impulso narrativo e classicista, também se vale das suas referências para experimentar possibilidades de construção em termos de linguagem. E isso é algo percebido, por exemplo, na escolha dos diretores em mesclar diferentes formatos de tela presentes no filme.
Toda a sua estrutura, olhando mais atentamente, está envolta em uma condição triádica. Onde as chaves de significado e forma se condicionam a partir de três elementos. Daí temos três diretores, que idealizaram um projeto constituído de três diferentes estórias, com três atos, até chegarmos ao componente técnico das três proporções de telas que o constituem: 1,33; 1;85 e 2;35. E para cada um dos atos do filme, usou-se um tipo de escala específica.
Todo o primeiro ato tem na dimensão 1,85 a sua principal referência. Portanto, uma tela conhecida como “janela norte-americana”, de proporção média e que até hoje é utilizada em produções que não utilizam processos anamórficos. Já no segundo ato, a tela se expande na dimensão 2,35, conhecida como “janela anamórfica”. A imagem é enquadrada em formato largo, através de uma lente cilíndrica, encolhida para caber em um fotograma de proporção 1,33. Em seu último e terceiro ato o filme reduz ainda mais a proporção da tela por meio do formato 1,33, também chamado de “janela clássica”, utilizado pela televisão tradicional.
Falar desse componente técnico do filme é importante para dimensionarmos (conceitual e literalmente) a sua vertente palpável e em como ela é impressa materialmente na obra, a partir do que vemos nela. Estamos diante de um trabalho multigênero. Ele tem sua carga experimental, do prólogo de um mapa do Ceará em chamas para nos dizer que talvez somente das cinzas é que nossa história poderá ser recontada. Assim como flerta com uma proposta mais clássica tal qual o faroeste, cujas planícies, enquadradas em planos imponentes de uma paisagem tão árida quanto seus viventes, relembram em tudo a escola de John Ford, por exemplo.
Junto a esse arcabouço mais concreto, o Último Trago traz consigo uma forte camada temática que balanceia muito bem o tom de uma crítica que não cede a “excessos reacionários”, como alerta outros importantes autores brasileiros, vide Adyrlei Queirós. Ao mesmo tempo em que se subscreve a partir de uma proposta intertitular e exige um foco e intenção interpretativa e de ressignificação do seu espectador.
Afinal, onde encontramos a problematização subscrita em O Último Trago? Ela está naquilo o que o próprio filme não “dá a ver”, em um sentido lato. Ou seja, naquilo o que ele não mostra no conjunto da montagem cirúrgica de Clarissa Campolina e da fotografia assinada por Ivo Lopes.
A resistência contra um pensamento hegemônico-conservador nacional se materializa pela figura da mulher que não prescinde de um ideal de amor. Essa, assim como Marlene (Elisa Porto), ama quem ela quiser. Ou por meio do ideal familiar. A família pode ser encontrada no seio dos amigos ou em uma palavra de conforto de um companheiro que não receia dizer, de homem para homem, do quanto te ama.
É claro que, para falarmos sobre as significações de todas as referências contidas em O Último Trago, precisaríamos de mais linhas. Afinal, como não nos encontrarmos no monólogo de Vicente (Rodrigo Fischer), que insere o realismo fantástico sertanejo de José Alcides Pinto em uma tocante reflexão sobre o pesar e o terror por que o homem simples cearense passa há séculos, desde então. E à medida que entramos nas camadas que o filme traz, mais fundo também se torna o mergulho nas mensagens contidas em suas entrelinhas.
Mas elas precisam ser explicadas? Não. A exemplo do que afirma David Lynch, nem sempre o significado das coisas dentro do filme, seja na ordem da sua forma ou do seu sentido, precisam ser explicadas, decifradas. Muitas vezes, o ideal é nos alumbrarmos a partir daquilo o que a narrativa nos entrega. E isso foi algo que tanto Pedro, Luiz e Ricardo Pretti, assim como todo o coletivo que compõe o Alumbramento, fizeram ao longo dos seus últimos 11 anos de atividades.
O Último Trago pode ser um ponto final nas atividades deste prolífico grupo de artistas, mas não das ideias que o seu cinema inspirou e seguirá inspirando nas gerações por vir. Porque os filmes continuarão vivos. E assim como nossas ideias, eles não morrem nunca. Longa vida ao cinema cearense!
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