Direção: Steven Spielberg. Roteiro: Robert Rodat. Produção: Ian Bryce. Fotografia: Janusz Kaminski. Montagem: Michael Kahn. Design de Produção: Thomas E. Sanders. Música:John Williams.
A primeira vez que assisti ao “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), tinha cerca de 11 anos de idade. Lembro da fita em VHS e de toda a atmosfera de estranhamento que ela me causara em função de um misto e sensações que, até aquele momento, não havia sentido diante de um filme. Eu sabia que estava diante de um Spielberg, E.T – O Extraterrestre (1982) ainda me causava uma impressão semelhante àquele que se tornaria quase que instantaneamente em um clássico absoluto dos filmes de guerra. Eu sabia que, naquele não tão longínquo final de século XX, estava diante de uma das histórias particulares narrativas bélicas que o cinema nos contou.
No filme, acompanhamos um grupo de soldados do exército americano que, liderados pelo Capitão MIller (Tom Hanks) cruzam as linhas inimigas na Normandia durante a II Guerra Mundial na tentativa de resgatar um paraquedista cujos irmãos foram todos mortos em combate. Direto sem deixar de ser denso, e simples sem abrir mão da sua complexidade, O Resgate do Soldado Ryan é uma das obras mais autênticas dessas últimas duas décadas. É claro que, quando discutimos tais termos, toda uma gama conceitual de contextos específicos precisam ser consideradas. E o sentido que move a razão de ser do filme bem como sua própria natureza é uma delas.
Falar disso é dizer que esse é um longa que canta o ideário acerca do heroísmo norte americano inserido no contexto da aventura histórica. É falarmos do lema que versa sobre a filosofia de que “nenhum homem é deixado para trás durante o combate”, independentemente do quão hostil seja a situação enfrentada. É claro que, para tocarmos nos pontos que evocam as ideias e representatividades contidas numa obra como essa temos de contrabalancear outros 2/3 de história do cinema. Entre o que é gênero e autoria, construção de personagens e as narrativas onde estes se apresentam há um multiverso que pode ser explorado de infinitas formas.
Considerar o gênero aqui importa por estarmos diante do interessantíssimo cinema que é uma imensa indústria, mas que não deixa de prezar pela técnica e o preciosismo que faz da cinematografia uma das mais potentes formas de expressão artísticas. E não falamos disso simplesmente em função da assinatura de Steven Spielberg e do primoroso roteiro escrito por Robert Rodat. Mas igualmente a partir de todo um trabalho de pesquisa histórica que serve de base para o núcleo central da obra: os conflitos bélicos.
Aqui, a fotografia de Januzs Kaminski emula magistralmente a estética e o conceito das imagens registradas pelo mestre húngaro Robert Capa* (1913-1954). A sequência da chegada dos soldados na praia de Omaha é um exemplo perfeito disso. O enclausuramento daqueles homens e toda a tensão que eles carregavam no momento que antecedeu o desembarque para enfrentar o inimigo foram transpostos por Spielberg e sua equipe de forma magistral. E onde Capa imprimiu o peso por meio do registro visual, já que ele esteve com os fuzileiros da vida real durante a II Guerra, no longa temos a possibilidade de ver a representação do que teria sido esse momento em imagens em movimento.
Toda a pressão e o terror do combate foram construídos no filme a partir da já consagrada aliança do uso potente da edição e mixagens de som com uma câmera nervosa que nos coloca na ação, ainda que enquanto espectadores. Nós saltamos na água com esses homens, sentimos a sensação agonizante das balas que cravavam seus corpos e víamos, na tela, o sangue que ficava impresso nas lentes de cada uma das cenas que compõem essa esplendorosa cena que configura a construção da ação dentro do exercício fílmico.
Óbvio que, 20 anos depois, falar desses tópicos soam pouco impactantes se consideramos o alto nível de grafismo contido nas imagens do cinema contemporâneo. Mas voltando àquele contexto de final dos anos 1990, pouquíssimos filmes, ou talvez nenhum produzido em grande escala, como o caso de “O Resgate”, tenha experimentado mais profundamente imprimir uma estética mais agressiva e crua na representação do que é ou fora o drama de uma Grande Guerra. Há um grafismo nessas imagens que impressionam passados 20 anos e seguirão nos impressionado pelos próximos 40 e 80 anos, com toda a certeza.
Mas é a aura de complementaridade e contrabalanceamento dessas tensões que tornam o longa tão singular. A violência não é gratuita num afã de chocar o público. Pelo contrário, ela vem para nos dar uma dimensão da loucura que é uma guerra. Mas todo a representação desse descontrole é dosado igualmente pela humanidade contida em cada um desses personagens que seguimos e nas situações por eles divididas, sejam nas escalas mais individuais ou nas situações experienciadas em coletivo.
O fato é que O Resgate do Soldado Ryan é antes mesmo de uma grande ode ao senso de patriotismo e aos códigos de honra norte americanos, é uma obra prima do cinema. Não como clichê, mas por ter sido construído pragmaticamente em função disso. Por reunir aquilo o que a história real nos contou ao longo das décadas do século passado. E por levar consigo todos os preciosíssimos tópicos do fazer audiovisual, como a importância da narrativa contada por meio da ação. Ou das variações tonais entre situações de extrema tensão e momentos de crescimento dos personagens que seguimos durante as 2 horas e 49 minutos de projeção.
Sua longa duração, portanto, não é uma pré-condição pautada pela grande máquina industrial. É uma necessidade do autor que dirige narrativas feitas para inspirar e nos levar para dentro dos instantes que podemos não ter vivido, mas que por meio da sua obra, sim, sentir “como se fosse”. É pra isso que serve o bom cinema. Para nos aproximar, nos distanciar daquilo o que vemos em cena. Sempre em um misto de percepção de atos em uma escala macro e micro, na distância e na proximidade. No eco que estronda os ouvidos e no sussurro do homem que não acredita presenciar o terror diante dele.
*Robert Capa foi um dos mais célebres fotógrafos de guerra do século XX, tendo realizado cobertura fotográfica de alguns dos mais importantes conflitos da história como a Guerra Civil Espanhola, a II Guerra Mundial, a Segunda Guerra Sino-Janoponesa. Faleceu em 25 de maio durante ao pisar em uma mina terrestre durante a cobertura da Guerra da Indochina .
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