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O Fantasma: do humano entre as pulsões de vida e morte


Direção: João Pedro Rodrigues. Roteiro:João Pedro Rodrigues. José Neves. Paulo Rebelo. Alexandre Melo. Montagem:Paulo Rebelo, João Pedro Rodrigues. Direção de Fotografia:Rui Poças. Produção:Amândio Coroado. Direção de Arte João Rui Guerra da Mata. Direção de Arte:João Rui Guerra da Mata.



Sob o pecado, o ser humano não legisla mais sobre si mesmo. Apesar de não ter o discurso da crítica religiosa sob o pano de fundo de seu filme de estreia, o português João Pedro Rodrigues (JPR) parece ter partido da reflexão agostiniana acima para concretizar seu brilhante “O Fantasma” (2000). Uma das obras definitivas desse século, o longa parte de uma crueza estética e conceitual para falar sobre os limites do debate entre o corpo, a sexualidade e o indivíduo na contemporaneidade.


À princípio, é importante entender que esse não é um trabalho que presume projeção ou autoidentificação com a figura do protagonista. Sérgio (Ricardo Meneses) é esse sujeito cuja jornada é a da autodescoberta, na verdade. João Pedro sabe quem ele é, e por isso, o insere em situações bastante específicas, do primeiro ao último plano da narrativa. Essa tomada de consciência é exatamente o que torna esse filme tão bom e coerente. Estar no controle do exercício da realização é uma das provas máximas do êxito nesse fazer com a arte.


O caminho desse homem, portanto, é ao encontro do encaixe à sua animalidade. Por isso, quando o vemos de rosto descoberto pela primeira vez, sua interação mais compromissada é com seu cachorro, Lorde. Interessante é notarmos que, na verdade, nesse momento o vemos sob a máscara que ele veste na sua aparente realidade. O Sérgio que opera como lixeiro pelas ruas portuguesas à noite é apenas uma persona. Aquele a quem ele busca está pelo seu avesso, do lado de dentro da sua psique.


Mas como essa transformação do humano para esse outro ocorre? Como todo grande realizador do nosso tempo, JPR, parte de uma construção narratológica simples. Todo o trajeto do nosso homem ocorre por meio da ação. E ai vemos Sérgio sempre fazendo algo, nos mostrando e lançando-nos dentro de alguma situação determinante para a sua transmutação. Uma felação feita em um agente de segurança, uma tentativa de violação de uma companheira de trabalho, a busca por algo no lixo de uma vizinhança qualquer.


Tudo isso pende para o rompimento da corda que separa o homem do bicho. No entanto, é preciso pontuarmos que esse movimento não é apresentado como um portrait exótico ou mera representação de uma estereótipo à modelo das propostas do cinema mainstream, por exemplo. Todo esse trajeto é o que define essa figura na sua demasiada humanidade. Esse é o estudo que o Fantasma nos propõe. Seu homem principal não é herói ou algoz, não é modelo, nem exemplo de má conduta.


Ele apenas é algo que está dentro de cada ser vivente. É o desejo reprimido que cada cidadão contemporâneo, muitas vezes, luta ao longo de toda uma vida. É a síntese máxima da beleza daquilo o que a arte do cinema consegue, a exemplo de tantas outras formas artísticas, nos unir diante da condição de sermos testemunhos do nascimento de um homem que se aceita e se assume diante das suas mais primitivas e legítimas pulsões de morte e de vida.


O filme não quer nos chocar, apesar do seu efeito final ser esse, de alguma forma. Quando os créditos finais sobem na tela, é todo um trabalho baseado em um consistente conjunto de referências ao imaginário da cultura queer e ao cinema enquanto arte de contar estórias por meio de imagens e sons que nos vêm à mente. Não é como se Sergio fosse uma figura sem desculpas por ser quem ele é. Não é a luxúria que o define como uma figura esquisita. Ser esquisito ou não, sequer é uma questão aqui.


E isso é algo ótimo porque liberta o protagonista do julgo de outros personagens. Ou seja, ele atua no universo da estória independente daquilo o que poderia vir a ser conflito. Se ele vaga pela noite, quer pelas ruas desertas ou nos banheiros públicos da cidade, isso é algo que só diz respeito a ele mesmo. Os efeitos destrutivos ou de prazer momentâneo dessas situações também estão circunscritas somente a ele próprio.


Interessante notar que, quando essa linha é transposta, é no momento em que um segundo elemento é adicionado ao seu círculo de ação. Nesse instante, não há retorno para Sérgio, e ele sabe disso. Entregue à sua condição primária, no entanto, ele também hesita e exerce um último (ou seria primeiro) gesto de real empatia e humanidade. Ele coloca a vida em primeiro plano. Satisfaz seu desejo, mas escolhe escolhe a vida.



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