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No Portal da Eternidade: Dualismo e humanidade na biografia dramática


Direção: Julian Schnabel. Roteiro: Julian Schnabel, Claude Carrière, Louise Kugelberg. Produção: Charles-Marie Anthonioz. Fotografia: Benoît Delhomme. Montagem: Louise Kugelberg, Julian Schnabel. Música: Tatiana Lisovkaia. Direção de Arte: Loïc Chavanon.


Dramas biográficos tornaram-se, ao longo das décadas, um dos gêneros mais explorados da história do cinema. Suas abordagens e fórmulas variaram e ainda são constantemente abordadas e testadas nas mais diferentes obras. Quando um filme, entretanto, consegue contornar alguns dos próprios códigos dos quais é feito e repensa-se em termos de forma e conteúdo, então sabemos que estamos diante de algo especial. E No Portal da Eternidade* (2019), é um desses trabalhos.

Dirigido por Julian Schnabel, e escrito por este em colaboração com Jean-Claude Carrière e Louise Kugelberg, o longa-metragem conta a estória do famoso, mas atormentado, Vincent van Gogh (Willem Dafoe) em seus últimos anos no período em que viveu em Arles e Auvers-sur-Oise, na França, pintando obras-primas do mundo natural que o rodeava.


Interessante o gesto de Schnabel em partir de um recorte no tempo e espaço para contar essa narrativa. E na delimitação desse intervalo é que o filme se fortalece. Ele não necessariamente parte da ideia de remontar às origens do biografado. Ao invés disso, ele na verdade, fragmenta a história tanto em termos de técnica quanto de sentido. Comecemos pela técnica, dado que temos aqui os elementos mais palpáveis da obra.

De início, seu prólogo é apresentado por meio de uma construção “in medias res”. Do latim, “no meio das coisas”, a técnica é usada no cinema para se contar um evento que ocorrerá futuramente na narrativa, usando-o como uma espécie de abertura do filme. A ordem cronológica dos fatos é quebrada e o espectador é lançado a um momento em que os eventos já estão ocorrendo.


Por isso que na primeira cena de “No Portal...”, vemos van Gogh se aproximando de uma moça camponesa a fim de fazer-lhe um desenho. Não vemos a conclusão desse encontro neste instante, mas sim em outro momento do filme, por volta do terceiro ato, quando testemunhamos a sua conclusão. Estamos diante de uma obra fragmentada e por isso mesmo essa estrutura se encaixa tão bem nela.


Em termos formais, dividi-la em uma fatia temporal nos ajuda a entender esse decisivo período da vida de uma das maiores mentes que a arte moderna já teve. Mais que isso. Falando também em termos conceituais, é a própria mente de van Gogh que se fragmenta diante de nós. E um dos grandes méritos do longa é conseguir traduzir essa condição do personagem por meio de sons e imagens. Ele lança mão do seu caráter sinestésico e, por vezes, trabalha o som como uma camada independente da imagem; e em outros momentos ele entrelaça essas duas bandas tornando-as uma só.

Quando Vincent é retratado em seus momentos de maior estabilidade, os planos do filme emulam essa atmosfera. As imagens são mais estáveis e bem definidas. A trilha sonora acompanha um piano que ajuda a ilustrar o artista em seus melhores momentos, seja numa caminhada em um vasto campo diante de um dia de sol; ou de uma paisagem vista do alto de um monte. Aqui, o filme nos mostra o sublime pela perspectiva de um homem totalmente conectado consigo mesmo e com seu entorno.

Mas nos momentos em que as crises abatiam nosso artista, as imagens vistas em planos subjetivos do próprio Vincent tornam-se turvas, por vezes mudando até de coloração. Os sons, antes singulares, se multiplicam e repetem-se em distintas bandas sobrepostas umas às outras. Tudo é distorção e Schnabel usa isso em favor do filme e como forma de nos mostrar que uma crise se aproximava e o homem, que anteriormente estava conectado consigo, perde essa ligação na impossibilidade de distinguir quantas camadas sua realidade tem, ou quantos sons e imagens estão diante dele.


Essa dualidade tão característica na biografia de van Gogh é assumida pelo filme como uma maneira sincera de representação. Ele evita idealizar a figura do artista, ao mesmo tempo em que problematiza grande parte das limitações que o tornavam uma figura atormentada e frágil. Quadro esse definido decisivamente a partir da interpretação de Dafoe enquanto van Gogh.

Impressiona a modulação que o ator segue a partir de sutilezas que constroem a persona do pintor holandês. Do modo como a atuação jamais oscila desmedidamente. Ela possui uma espécie de teto para momentos de maior carga dramática - Vincent reencontrando o irmão, Theo (Rupert Friend), em centro psiquiátrico; e outros instantes de menor peso emocional - van Gogh pintando o amigo Dr. Paul Gachet (Mathieu Amalric) durante uma tarde calma e silenciosa. Uma questão que fica é: iria isso o Oscar 2019 considerar? Seria justo.

Mas para além do que a Academia e sua premiação traz, os filmes são o que importa. Em uma temporada de grandes lançamentos, ora esquecidos (Suspiria), ora esnobados (First Reformed), a alegria é saber que esses filmes estão no mundo. Eles existem e para sempre aí estarão, na alegria de que a arte do cinema é, de fato, ilimitada, não estando, por isso mesmo, limitada ao encontro de uma cerimônia. E sendo vencedor ou não, indicado ou despercebidos, os grandes filmes sempre estarão conosco, sempre. Assim como No Portal da Eternidade aí está.


* No Portal da Eternidade está em cartaz em Fortaleza

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