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Julieta: A alteridade como matéria-prima do cinema


Direção: Pedro Alomodóvar. Roteiro: Pedro Alomodóvar, Alice Munro. Produção: Agustín Almodóvar, Esther García. Fotografia: Jean-Claude Larrieu. Direção de Arte: Carlos Bodelón. Design de Produção: Antxón Gómez. Montagem: José Salcedo. Música: Alberto Iglesias.



O cinema é uma arte de criação. E esse estar inventivo tem muito a ver com a forma que realizadores e equipe de produção trabalham em cada projeto audiovisual. No cinema contemporâneo, é pela mão da noção de autoria que recebemos, percebemos e somos afetados por uma cinematografia que rompe com os vícios e limitações dessa arte, sobretudo em sua escala industrial. Dentre esses nomes, destaca-se o do diretor espanhol Pedro Almodóvar.

Assim, em Julieta (2016), o diretor nos conta a estória da personagem homônima que rememora os anos vividos junto à filha, Antía (Priscilla Delgado) ao mesmo tempo em que busca entender os motivos que fizeram a garota sumir da vida que, até então, juntas viviam. O longa traz consigo toda uma gama de referências numa franca discussão sobre laços familiares e o peso das decisões que tomamos em nossas vidas.

Estamos, portanto, diante de um grande drama. Quem teve o prazer de assistir aos trabalhos que antecederam Julieta, sabe que o cinema “almodoviano” opera dentro de certos códigos que passam pela dramaturgia, a fotografia, o som e a direção de arte. Aqui, todos esses elementos novamente se entrecruzam para a construção de uma narrativa que é conteúdo e forma em sua essência.

Em termos de conteúdo, o filme combina todos os elementos acima listados. Mas o tom de sobriedade que o reveste destoa um pouco da marca de um cinema onde historicamente Almodóvar adotara o drama com variações tonais satíricas, surrealistas e de comédia. O que Julieta revela é uma proposta marcadamente naturalista que muito nos lembra os trabalhos da fase dramática de Woody Allen.

E de fato, há muito de Setembro (1987), Interiores (1978) e Hanna e suas Irmãs(1986) nesse novo Almodóvar. E como isso é maravilhoso! Porque temos uma oportunidade de vermos o autor indo um pouco além das questões de gênero, sexo ou mesmo da comédia. É claro que esses são índices que o filme trabalha, mas lançados parcimoniosamente. E a redução parece ser, de fato, uma aposta aplicada nesse longa.

Porque reduzir, na cinematografia, pode ser uma questão de metragem, ou no tempo que o filme dura; quanto no espaço suficiente para o desenvolvimento da narrativa do mesmo. E essa narrativa encontra na percepção da relevância dos detalhes sua maior potência. Nesse ponto, a realização repousa obviamente numa base marcada, mas que se contrabalanceia por meio do uso exato do cinema como uma arte operada por meio de signos e dispositivos específicos.

A aplicação do close-up é um deles. Porque quando Julieta beija a tatuagem que seu marido Xoan (Daniel Grao) fez em sua homenagem, vemos os lábios de nossa protagonista se hiperdimensionarem diante nossos olhos e ganharem a dimensão da tela de projeção. Menor que isso eles não poderiam ser, uma vez que esse gesto é mais que uma formalidade técnica. Ele é uma peça essencial para o nosso entendimento da dimensão narratológica embutida no cinema. Nossa atenção precisa estar voltada somente para o beijo. E dele devemos nos aproximar.


Assim como também mergulhamos na estória por meio do uso do slow motion. E naturalmente, a ferramenta faz-se útil não somente como um braço técnico, mas sobretudo como uma figura conteudística, de reforço do sentido da narrativa. O que significa dizer que, quando vemos um cervo correndo em um campo aberto na noite hispânica, o fazemos pelos olhos de Julieta, que observa o animal cortar o tempo ou esculpi-lo através de uma super câmera lenta, de modo como somente o cinema pode fazer.

Esse olhar que é de Julieta, mas também se torna nosso é, no fundo, a visão generosa de Almodóvar, que a compartilha conosco e mais que isso, nos convida a construí-lo com ele mesmo. E esse é um dado evidenciado no modo como o diretor decide conduzir sua obra.

Ele não a prolonga e ao contrário, a encerra no exato instante em que poderíamos supor um possível desenlace. A extensão e completude da estória fica à nosso encargo. E nesse momento somos nós também criadores nesse cinema que só tem sentido através do olhar do outro. Do seu e do meu olhar.

E por isso o cinema de Almodóvar é como essa diretriz que nos aponta uma tomada de visão artística baseada na sinceridade e no interesse pelas questões da alma. É como lembrarmos do legado deixado por Abbas Kiarostami (1940-2016). Um exemplo de realizador e artista que semeou na cinematografia e na arte audiovisual, todo um universo de novas possibilidades e modelo de compreensão desse nosso maravilhoso fazer artístico.

Um modelo baseado na fotografia como ponto de expansão da narrativa cinematográfica e na potencialidade das personagens como catalizadoras de uma ressignificação nos modos de se contar uma estória no cinema contemporâneo. Assim o fez Kiarostami, assim faz Almodóvar, assim é o cinema.

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