Direção: Spike Lee. Roteiro: Charlie Wachtel, David Rabinowitz, Kevin Willmott, Spike Lee. Produção: Jason Blum. Fotografia: Chayse Irvin. Montagem: Barry Alexander Brown. Música: Terence Blanchard.
O cinema de Spike Lee é iminentemente político. Dono de uma filmografia diversa entre filmes de maior capilaridade e outros não tão em evidência junto ao público, o realizador norte-americano traz em seu mais recente trabalho todo o preciosismo de uma obra igualmente diversa em termos de representação sociocultural na pós modernidade. Assim, ele toma as referências de eventos ocorridos em meio às lutas pelos Direitos Civis de 1970 para nos incitar uma pertinente reflexão sobre as contradições e conflitos da contemporaneidade em Infiltrado na Klan (2018).
Baseado em eventos reais que inspiraram o livro de Ron Stallworth, o filme conta a estória de um policial afro-americano, Ron Stallworth (John David Washington), que consegue se infiltrar na filial do Colorado da Ku Klux Klan com a ajuda de Flip Zimmerman (Adam Driver), seu substituto e parceiro judeu. A partir deste ponto o filme se desenvolve com traços bem particulares que o colocam acima de tudo como um trabalho autoral. A apropriação do tema pode ser um ponto de partida em discussão.
Porque a temática racial e a política que entremeia essa conjuntura é um detonador fulcral da cinematografia de Spike Lee. Em “Infiltrado...” esses dois elementos atuam dentro de um escopo técnico e conceitual muito bem delimitado. Falar da técnica é dizer de como o diretor olha para o filme cinematograficamente. Já mencionar o conceito é lembrar a importância da consistência para com o desenvolvimento do tema ali tratado. Uma vez que, apesar de político, o longa não cede a uma prerrogativa reacionária ou caricata de si mesmo.
Falar de um longa e sua natureza cinematográfica pode soar pleonásticamente, mas não em nosso caso. Ser cinematográfico é o filme guiar nosso olhar enquanto espectadores para os pontos que ele julga ser de importante entendimento da obra, seja nas suas partes ou no seu todo. A precisão com que Lee, por meio do trabalho do diretor de fotografia Chayse Irvin, calcula os planos de cada cena reforça a construção de um sentido pela forma que o filme tem.
Quando vemos a sobreposição de rostos em close ups de várias pessoas durante um discurso de um líder político dos Panteras Negras, essas imagens endossam todo um desejo do diretor quanto a sublimidade constituída nestas pessoas em cena. Nisso, nada vem à tela gratuitamente em Infiltrado na Klan. Logo, se há forma, há sentido. E vice-versa. Esse é o modo que o bom cinema tem de nos mostrar o mundo por meio de uma gramática própria. E entre aquilo o que vemos e ouvimos nesta gramática da cinematografia, há sempre um coeficiente de técnica e sentido. Aqui, entramos na esfera temática, outro ponto de inflexão determinante no trabalho de Lee.
Apesar de desenvolver-se a partir e no meio de uma perspectiva “genérica”, entendendo-se o gênero como um dos paradigmas fundantes do fazer cinematográfico, o filme é todo construído a partir de um interessantíssimo preceito de negação. Esse negar-se, entretanto, vem para somar naquilo o que o longa-metragem é, e não em uma vertente anular. Porque se, quanto ao gênero, identificamos Infiltrado na Klan como um filme de crime e ação, nenhum dos códigos usualmente presentes nestas obras são notados aqui.
Temos uma biografia de oficiais da polícia mas em nenhum momento vemos tiros contextualizados em cenas de perseguição, sejam à pé ou de carros, ou passagens de lutas corpo a corpo, o que levaria direto à veia da violência gráfica, característica do cinema de ação moderno. Ou seja, Spike Lee recusa todos esses artifícios em prol da originalidade que reveste seu trabalho. Ele nega os gatilhos que levam o cinema para o fatídico caminho do clichê e toma parte de uma escolha pela autoria. Mais que isso, ele leva alternativas de novas interpretações para o espectador, cuja posição nesse momento, sai do lugar do consumidor passivo ao convite de assumir-se pelas possibilidades que a emancipação do olhar dá a ver.
E não apenas por essas razões e traços que Infiltrado na Klan é um grande filme. Por reunir o drama biográfico com a riqueza que a adaptação cinematográfica pode trazer para o exercício de nossa reflexão no presente, é que este longa também se ressignifica de modo tão potente. Ele nos impele um inexorável choque de consciência entre os fatos que definiram algumas das páginas do nosso passado mas que se reconfiguram pelas decisões que tomamos hoje. O último ato do filme é uma representação prática disso.
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