Direção: Pawel Pawlikowski. Roteiro: Pawel Pawlikowski, Janusz Glowacki, Piotr Borkowski. Produção: Daniel Battsek. Fotografia: Lukasz Zal. Montagem: Jaroslaw Kaminski.
Teria o amor uma forma única e acabada de representação? Essa parece ser uma das perguntas detonadoras quando nos colocamos diante de um trabalho tão fascinante como Guerra Fria* (2019). Ambientado entre anos 1950 e 1960, o filme acompanha Wiktor (Tomasz Kot), um diretor musical que se apaixona por uma jovem cantora, Zula (Joanna Kulig), ao mesmo tempo em que tenta persuadi-la a fugir da Polônia comunista rumo à França. Apesar do forte sentimento, os dois terão de vencer as diferenças entre seus temperamentos para viver esse amor quase impossível.
Mas antes de ser um romance, o 6º longa-metragem do realizador polonês Pawel Pawlikowski é uma obra sobre a auto corrosividade do amor e o seu caráter auto destrutivo. A princípio, a ideia soa contraditória, mas é por meio do jogo entre as decisões estéticas e temáticas que o filme ganha indestrutíveis camadas que o alçam como uma das mais sólidas obras lançadas no cinema europeu no último ano.
A escolha por uma estética em preto e branco remonta a uma vertente cinematográfica de um cinema clássico polaco cuja expansão ocorrera principalmente no período entreguerras. Não se trata, portanto, de uma decisão cosmética. Pelo contrário, as imagens que o diretor de fotografia Lukasz Zal capta possuem toda a força e tradição dos filmes criados no final da Primeira Guerra. O cinza, preto e branco de cada plano em Guerra Fria vêm revestidos de história e, por ela mesma, reafirmada.
Mas ainda no terreno estético, o aspecto da tela em 4:3, cujo enquadramento é mais comum para TVs analógicas, reforça esse traço nostálgico adotado pelo cinema contemporâneo. Neste filme, mais uma vez, a decisão técnica se legitima em função da proposta assumida pelo mesmo. Se estamos na segunda metade do século XX, vale a impressão de uma estética que aproxime o espectador da atmosfera desse período.
Mas assim como um mundo em ruínas que tentava gradualmente se reerguer após um traumático período bélico, a estória de amor entre Zula e Wiktor pode ser tomada como uma espécie de metáfora dessa ordem europeia configurada àquele contexto. Interessante como Pawlikowski, apesar de idealizar essas personagens enquanto protagonistas, não os idealiza ao nível de uma representação alienada.
Ele os constrói como figuras clivadas de certo amor próprio e, ao invés de tentar “conserta-los” a fim de encaixá-los em um desfecho autoindulgente, o diretor opta por assumi-los como eles o são. Em preto e branco, portanto, temos de olhar para esse casal cuja maior batalha é, de fato, a incontingência de um afeto irrefreável e a impossibilidade de vivência desse sentimento em uma vida terrena.
É curioso como nossos protagonistas são dois personagens clássicos com variações tonais de narrativas cinematográficas modernas e contemporâneas. Pelas suas características clássicas, percebemos o quanto os dois vagueiam por meio de diferentes anos e países mantendo uma postura reativa aos ambientes e situações que lhe ocorrem. Wiktor sugere à Zula uma fuga para a França. Anos mais tarde, Zula visita seu amado na Polônia e juntos iniciam nova jornada. O detonador comum é a ação ante uma situação limite.
Entre idas e vindas, no intervalo de 1949 a 1964, percebemos estar diante de um épico contemporâneo. Uma leitura justificada tanto pelo índice temporal da trama, quanto pelo subtexto em que ela se desenvolve. Os cenários grandiosos revestidos por centenas de pessoas convergem para locações mais intimistas, onde cada lugar se torna também um importante personagem. As bandas sonoras imponentes, se transmutam para um canto sublime captado em som direto por uma arrebatadora cantora polaca.
São muitas as características que validam Guerra Fria como um dos melhores filmes de 2018/2019. As três indicações ao Oscar (Melhor Direção, Filme Estrangeiro e Fotografia) além da Palma de Ouro de Melhor Direção no Festival de Cannes em 2018 são um reconhecimento palpável. Mas olhemos, antes dos títulos, para a obra.
Entendo-a como uma parte importantíssima da experiência cinematográfica contemporânea que nos diz, por meio de estórias possíveis, sobre a imprevisibilidade da vida; sobre esse amor que só pode encontrar alguma paz no entendimento de que o fracasso é parte da jornada. E que, por essa mesma razão, muitas vezes só pode encontrar seu lugar do outro lado de um campo sob a alvorada de um dia que se vai.
* Guerra Fria encontra-se em cartaz nos cinema de Fortaleza.
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