Direção: Kelly Reichardt. Roteiro: Jonathan Raymond, Kelly Reichardt. Montagem: Kelly Reichardt. Direção de Fotografia: Christopher Blauvelt. Produção:Chris Carroll. Direção de Arte Lisa Ward. Música: William Tyler.
Existe uma cinematografia que exorta uma espécie de aliança no que poderíamos chamar de “meio termo” da produção audiovisual contemporânea. Desses filmes que conseguem alinhar bem esse chamado forte do cinema de aventuras e daquele que assume a política como conceito, sem negar a um ou outro vezo, necessariamente. Entre as obras que inspiram esse ar de possibilidades múltiplas, 2020 pode ser representado pelo terno First Cow.
Interessante como o filme joga com a ideia do uso dos gêneros para dar conta de uma espécie de contra-proposta à perspectiva mais hegemônica do modelo de representação contemporânea. Ele parte de uma premissa histórica e documental para discutir algumas questões e temas bem específicos dos pioneiros do Oeste Norte Americano, por exemplo. Estamos diante de um western, portanto.
Mas não nos prendamos aos rótulos, aqui. Importante termos em mente que o trato com o gênero apenas ajuda na modulação temática da obra. O interesse de Kelly Reichardt parece residir muito mais nessa tecitura do imprevisto da concepção dramatúrgica do que nessa proposição pré-moldada que muitas vezes dita a natureza dos filmes produzidos nos Estados Unidos. Dentro de uma estrutura industrial de produção, a diretora faz na prática um cinema de resistência.
Nessa idéia de um cinema que resiste a partir da experiência de busca do que seria um grau zero da denotação fílmica. Ou seja, a narrativa não anseia o puro e simples engajamento do espectador a partir dos meandros que a trama dá a ver. Nesse ambiente selvagem onde a civilização ocidental na América do Norte dava seus primeiros passos, a aventura seria um elemento base no desenvolvimento da trama, como de fato o é.
No entanto, nada há de extraordinário na jornada desse cozinheiro habilidoso (John Magaro) que acaba fazendo sociedade com um astuto imigrante chinês (Orion Lee) que assim como aquele ex-caçador, tenta fazer sua própria fortuna na região do Oregon no século XIX. Tudo o ocorre muito lentamente ao longo das 2 horas e 2 minutos de duração do longa. Reichardt adota um tom naturalista pra isso. Retornamos para o contexto da perspectiva denotativa.
E o curioso disso é como ela requer, com isso, o máximo da nossa atenção aos detalhes que o filme deixa no seu fora de campo conceitual. O fato de estarmos diante de um épico, mas que não tem a escala grandiosa das obras desse gênero. Tudo é redimensionado para uma escala quase microcósmica, apesar de sentirmos estar diante de um filme de época.
É um trabalho indie, com produção assinada pela A24, mas que ao mesmo tempo tem um tom solene, seja pelo trato da música original, do design de produção, roteiro e fotografia. Mais que isso, entretanto, a obra traz esse “interdito” do romance nessas mesmas dimensões. Mais uma vez, é preciso olharmos além dos dados indicados em tela. O que esta implícito na relação entre esses dois personagens é a grande beleza do filme, sem dúvidas.
Uma estória de amizade, pioneirismo na empresa das relações humanas e de amor, acima de tudo. Das vidas de pessoas invisíveis, cujo afeto, assim como muitos na contemporaneidade, têm de ser vivido na supressão daquilo o que se quer exprimir. Por isso mesmo, no entanto, é que a decisão de Reichardt de sugerir, ao invés de ilustrar isso, seja tão rica. Posição essa que ela sustenta até o fim da estória.
Do seu prólogo ao epílogo, a estória trata dessa política afetiva particular. Da jornadas desses personagens que não querem nada demais. Suas ações não transformarão a história da humanidade. Estamos diante da tela apenas para vê-los roubando leite de uma rara vaquinha de um região em desenvolvimento e assando biscoitos na noite para posterior venda nas manhãs seguintes. Mas algo parece não estar certo. O que seria, então?
Talvez a noção da tragédia. E com ela todo um imaginário de que, no cinema, o final feliz muitas vezes pressupõe a imaturidade de uma obra que não esteja pronta ainda para lidar com a idéia da impossibilidade como eixo único da maturidade do olhar do espectador para com o filme a quem ele olha. É isso o o que a boa cinematografia tem nos ensinado desde a época dos vaudevilles do final do século XIX.
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