Direção: Marcus Curvelo, Leon Sampaio. Roteiro: Amanda Devulsky, Camila Gregório, Leon Sampaio, Marcus Curvelo. Montagem: Frederico Benevides, Leon Sampaio, Marcus Curvelo, Ramon Coutinho. Direção de Fotografia: Victor de Melo. Som Direto: Marcela Santos. Produção: Marisa Merlo. Direção de Arte: Camila Gregório. Figurino: Camila Gregório.
A crítica social é uma das maiores potências na historiografia do cinema brasieiro. Mas para além desse comentário ácido acerca de algo ou de algum acontecimento na cultura de um povo, há de se entender a relação entre os limites que permeiam a dinâmica na construção de um argumento dessa forma artística. A cinematografia em si, e mais especificamente o filme enquanto elemento isolado dessa arte, se potencializam nesse fluxo contínuo entre a representação da contemporaneidade e a denúncia de uma realidade envolta em uma atmosfera distópica.
Em meio a isso é que “Eu, Empresa” (2021), traça essa investigação não formal de um Brasil sem futuro. O curioso é notar que essa arqueologia nacional, diferentemente do que observamos nas obras do início da década de 2010 (Doméstica, 2012), cuja investigação partia do geral para o particular, vai do particular para o geral. Inverte-se o movimento de análise da escala macro-micro e o indivíduo torna-se o elemento condutor da narrativa. Aqui, assumido pela figura de Jóder (Marcus Curvelo).
Nosso protagonista é um, entre tantos arquétipos possíveis na recente história brasileira. Ele é um trabalhador. Dizer isso importa exatamente porque é no mundo do “labor” que ele se sedimenta. Fracassado, o cansaço é uma dos seus traços mais marcantes. Diferentemente do que percebemos nas obras anteriores também protagonizadas pelo personagem, “Feio, Velho e Ruim” (2015) e “Joderismo” (2019), o Jóder dessa terceira parte do que poderíamos chamar de uma “trilogia do homem desesperançado", quer finalmente triunfar.
Na busca por essa veia de vencedor, é interessantíssima a perspectiva desse homem clivado. Repleto de buracos, ele é como uma espécie de Alice cujo caminho tomado não se define muito nitidamente. O País das Maravilhas seria essa Bahia contemporânea. Não futurística no seu coeficiente estético, mas pós-industrializada na sua estrutura de relações sociais. Trazer o conceito elaborado e problematizado por César Migliorin em 2011 a partir do ensaio “Por um cinema pós-industrial”, ajuda muito nessa reflexão.
Lançado uma década atrás, o texto dá luz a uma série de questões que notamos ser centrais no longa de Curvelo e Leon Sampaio. A essa reflexão sobre os filmes feitos à margem da grande indústria, ressoa esse objetivo fixo do nosso protagonista de ter sucesso na vida. Para isso, ele faz tudo o que preciso for. Daí consultar um coach de carreira, ir ao crossfit, se “uberizar” e fechar contratos com empresas europeias que exploram serviço barato nos países em desenvolvimento são parcelas dessa decisão quase desesperada de se encaixar nessa ordem mundial da contemporaneidade.
Tudo isso, claro, apenas são um grande arco que ilustra essa tragédia do homem moderno. Não é que Jóder seja construído como um protagonista oprimido pela escala do social. Além de clivado, ele é obtuso e pintado com incontáveis variações de cinza. Não conseguimos dizer de qual lado ele está. Não há lado, pra ser sincero. E isso é ótimo. Mais sentido faz se falamos de instantes de percepção. Hora ele é o cara do qual torcemos e desejamos ver triunfar na vida. Ora notamos o quanto ele é essa figura quase distópica cuja intenção sequer ele mesmo sabe qual é.
São variações de um personagem extremamente polarizado e por isso mesmo, perfeitamente encaixado nessa construção representativa onde o lugar de valor na roda do sistema capitalista está centrado não mais no produto ou na matéria, mas na modulação do conhecimento, nas formas de organização e gerência de uma inteligência coletiva. Não é da fisicalidade laboral dessa figura que o sistema se alimenta, mas sim da sua força de invenção, ou como coloca Migliorin, do “Lazzarato” da vida.
Sempre operando numa espécie de limite da existência, nosso herói não se corrompe por completo. Inserido nessa lógica da pós-industrialização, ele opera criativamente (produz seu conteúdo), possui certos meios de produção (a moradia, as ferramentas tecnológicas, o carro popular) e está dentro de uma linha de trabalho marcada pela imprevisibilidade dos processos. Sendo a “empresa de si mesmo”, ele na verdade não é ninguém.
É alguém no universo do mar de anônimos que vendem sua força de trabalho também em regime de precarização. Toda a sequência que traz o relato dos motoristas de aplicativos é o desenho em preto e branco do Brasil nessa segunda década de 20 desse novo século. Instigado pela roda megalomaníaca dessa (des)construção de sentidos, Jóder em verdade nos mostra que sua esperança pode até superar seu gesto de desistência na vida. Ele não desiste do trabalho da produção de si e acaba se reinventando a partir das contradições que essa condição impõe ao homem contemporâneo.
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