Direção: Guto Parente. Roteiro: Guto Parente. Montagem: Victor Costa Lopes, Guto Parente, Ticiana Augusto Lima, Taís Augusto. Direção de Fotografia: Linga Acácio. Produção: Ticiana Augusto Lima, César Teixeira. Som: Lucas Coelho de Carvalho, Paulo Gama. Música: Fafa Nascimento, Uirá dos Reis. Direção de Arte: Thaís de Campos.
É muito interessante essa relação que a prática cinematográfica do Ceará têm com a concepção dos espaços nos nossos filmes. Porque quando vemos o modo como Guto Parente constrói essa abordagem do Centro como um não-lugar, apenas o trânsito rápido se faz uma via possível.
No binômio Centro-Litoral, é da Praia de Iracema para os limites desse espaço comercial de Fortaleza onde a narrativa se apresenta. Problema é que à medida que o filme avança narrativamente, essa mesma espacialidade vai se inflando e a impressão que fica é a de que já vimos tudo o que essa estrutura parece poder apresentar.
Ora, se a dinâmica com a espacialidade fílmica remete a inúmeros modos de representação e reorganização dos eventos e das formas como os personagens interagem entre si, a ideia que esse novo filme de Guto Parente nos deixa é a de um esgarcamento das potencialidades e possibilidades que aquela proposta poderia trazer.
E na proposição de uma "narrativa de reconciliamento", sobram os vícios e cacoetes "número um" da gramática do cinema feito no Ceará da última década: personagens que não conseguem conversar entre si sem que o ritmo do diálogo não acabe em briga, insultos e mal entendidos.
Naquilo o que Ismael Xavier reflete como sendo um padrão de "personagens do ressentimento" nos anos 1990, notamos, também, em determinados personagens da cinematografia cearense da década de 2010, uma lógica da "recusa". Da negação ao diálogo, à troca de experiências e todo e qualquer tipo de formulação que ofereça alguma força às narrativas em curso.
Quando vamos pensar nos filmes realizados no âmbito da estética proposta e assumida pelo coletivo Alumbramento (2006 - 2016), muitos são os filmes que lidam com tópicos que misturam a crítica social com estórias de cunho universal. "Longa vida ao cinema cearense" (2008), Praia do Futuro (2008) e e "A amiga americana" (2009) são dos melhores exemplos de como o grupo de realizadores lidavam com esse núcleos múltiplos nos seus filmes, fossem eles longa ou curta-metragem.
Independente do tempo disposto, era o conceito de uma ideia que estava no centro da prática de realização. Em comum, os filmes desse período guardam consigo certas chaves que parecem ter se perdido ao longo do caminho de determinados trabalhos dos autores do, então, coletivo cearense.
Colocando isso em perspectiva para um determinado conjunto de filmes lançados no Brasil nas últimas duas décadas, fica uma constatação em primeiro plano.
A soma da obras parecem apontar um punhado de trabalhos cuja característica máxima é essa exposição simplista no trato dos afetos humanos (narrativas de pais e filhos que devem se reconciliar em alguma momento da trama) e uma acomodação nos usos e possibilidades narrativas que fluxo entre os gêneros permitem no cinema.
Obviamente, nem tudo se molda por isso na experiência nacional. Ainda na escala regional, é de Fred Benevides um dos melhores, senão o melhor filme que parte dessas premissas mas jamais se recalca ou se reconforta nesses índices dados. "Visita ao Filho" (2014) é uma prova de como nossa cinematografia pode partir de uma via simples (mise-en-secene coesa e uma construção dramatúrgica mínima) mas jamais simplista.
Um dos expoentes do mesmo Alumbramento de onde Guto veio e fez parte, Fred Benevides apontava, já em 2014, portanto uma década atrás, os rumos de uma veia cinematográfica radical, não por quebrar regras e desfiar os cânones do fazer fílmico, mas sim por permitir na sua ideação de organização do que pode ser uma estória de filme, algo sintético, por ser direto na exposição dos eventos, expansivo, por permitir a exploração de ambientes e situações que extrapolam a construção posta no filme, e marcante, por falar de temas afetivos sem ser personalista e sim, universal.
E na ausência de parte desses códigos é que o filme de Guto patina. Eu entendo o desejo de se falar do tempo vivido (pelos personagens e por aqueles que estavam no antecampo do processo de realização), mas o lugar do cinema nunca deve ser o do elogio autodeclamado porque, repito, nem tudo é sobre você, nós mesmos.
Isso me faz voltar a meados de 2014 quando, durante uma oficina que tive com Eduardo de Jesus, ele lançou uma incógnita que me questionou anos a fio. Para o pesquisador, os filmes da Alumbramento podiam ser tomadas nos seus primeiros anos, sobretudo, como um cinema autista . E por isso, não tomemos a expressão pelo pé da letra.
Porque olhando em retrospecto, entendo, hoje, o que Jesus, que foi um dos responsáveis por difundir a prática e o nome do coletivo pelo Brasil para além do Ceará, queria dizer com isso naquele contexto.
Para falar do mundo, o grupo tinha de aprender a falar do todo e não somente tomando a prática do filme como um exercício de capricho autoral, modulação estético-conceitual para o aceite e consequente logro junto a festivais de cinema ao redor mundo, ou de excitação da sua cultura fílmica, para superarmos a construção da cinefilia, diga-se.
Fechando com um exemplo que veio aqui mesmo do Ceará, parte das respostas que podem apontar caminhos para além dessa trilha viciada repousam em práticas tais quais as vistas no curta-metragem "Superdance" (2016) ou no longa-metragem "Corpo Delito" (2017).
Ambos, sim, excelentes exemplos da potência que o cinema cearense (em distinção àquele feito no Ceará, que também abre uma aba gigantesca para outras discussões que talvez não caibam aqui) pode dar a ver e nos apontam vias de acesso a um campo de práticas sem limites por não estarem moldadas ou fadadas pela limitação em termos de conceito e forma.
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