Direção: Christian Petzold. Roteiro: Christian Petzold, Anna Seghers. Montagem: Bettina Böhler. Fotografia: Hans Fromm. Produção: Antonin Debet, Florian Koerner von Gustorf. Design de Produção: Kade Gruber. Direção de Arte: Gilles Graziano. Música: Stefan Will.
O que pode o cinema contemporâneo? Entre filmes de natureza tão distintas, é difícil dizer por meio de uma única corrente de pensamento de onde emerge a potência das obras nascidas do tempo em que vivemos hoje. Refletir essa condição cronológica pode ser um exercício interessantíssimo. Somando-se a isso a possibilidade que a cinematografia tem de fabular a realidade e reimaginar universos tomados muitas vezes como fantasiosos. Dessa amálgama criativa é que despontam trabalhos como o irrepreensível Em Trânsito* (2019).
Quando Georg (Franz Rogowski) tenta fugir da França após a invasão de tropas fascistas, ele se encarrega dos manuscritos de um autor falecido e assume sua identidade. Preso em Marseille, acaba conhecendo Marie (Paula Beer), que está desesperada para encontrar seu marido desaparecido - o mesmo que Franz está fingindo ser. A situação se torna ainda mais complicada como ele começa a se apaixonar por ela.
Dirigido pelo diretor alemão Christian Petzold e adaptado do romance de Anna Seghers, o longa desenvolve uma narrativa de natureza distópica em uma linha cronológica que se desprende das amarras do fator “tempo”. Inicialmente, isso pode até soar contraditório, mas não se analisarmos o longa a partir do modo como ele se organiza no decorrer das suas 1h40 de duração. O recorte histórico não nos parece muito claro. Isso é ótimo porque passamos a entender qual o agenciamento que o diretor busca estabelecer conosco, enquanto espectadores.
O gesto de representação da perspectiva histórica no cinema pode ser desvirtuado. Essa é a condição que Em Trânsito nos apresenta. Ao invés de optar por uma via de condução narratológica clássica, Petzold experimenta cruzar as linhas temporais. Todo o contexto histórico do filme, assim como seu design de produção, incluindo ai direção de arte e maquiagem, nos fazem crer que estamos em um contexto da Segunda Guerra Mundial.
Aos poucos, vemos que não necessariamente estamos no século XX. Por todo o cenário onde a estória se passa, na França ocupada por um regime de exceção, há uma atmosfera de medo e perigo constantes. Mas, assim como fora na segunda metade do século XX, em pleno século XXI, não estaríamos vivenciando uma volta do recrudescimento dos Estados e dos próprios cidadãos a nossa volta? Esse é o salto que o filme dá. E só conseguimos percebê-lo se olharmos mais atentamente para o longa diante de nós.
Sua capacidade de ressiginificar códigos temporais e de gênero da gramática cinematográfica é o que o torna um trabalho tão especial. Em termos cronológicos, falamos da frutífera impossibilidade de definirmos a estória do filme em uma única linha. Porque é como se estivéssemos diante de personagens, cenários e contextos históricos mutáveis. Dramaturgicamente falando, podemos notar que essas figuras são do século XX, mas suas interações com esse espaço exterior é contemporâneo. Como isso pode ser? Esse é o trato que o realizador nos propõe, entrar nele é a saída para vermos além do próprio cinema.
Por isso, toda tentativa de pre-determinar um filme como esse, seja no tempo ou na condição do gênero, é um fator limitante. Porque não é isso o que ele pede da gente. Essa aura de indefinição tanto em termos formais quanto de conceito é o que legitima como uma obra original. Obviamente que o longa parte de uma série de referências que vão do melodrama histórico de Daniel Auteuil às distopias pós-apocalípticas de George Miller para repensar os próprios códigos do fazer cinematográfico contemporâneo.
Ele nos mostra que a lógica excludente que tende a polarizar o exercício fílmico só prejudica a experiência, tanto de quem exerce esse fazer quanto daquele que recebe a obra por meio da condição estética. Os campos que dividem um “cinema de arte” de um “cinema mainstream” deveriam ser complementares. Essa é a reflexão que Petzold traz para o nosso meio. Refletirmos sobre isso é o que pode nos livrar de todo julgo arbitrário do que é aceitável ou do que não seria no pensamento do cinema. Isso não existe.
No lugar de uma lógica dual, uma perspectiva complementar. De um cinema com contornos puristas mas que evoca muitos elementos das obras de gênero. Da narrativa de ação que caminha lado a lado com o drama histórico. Ao invés de segregar, agregar. Congregar o amor e a dor em um contexto onde as liberdades são vigiadas. O ato de se amar em um tempo onde os conflitos e a intolerância de um Estado opressor tenta a todo custo despedaçar a esperança em um futuro melhor é a maior mensagem que Em Trânsito nos deixa. É uma aposta certeira que diz muito da força do cinema contemporâneo como formados de visões em um mundo que se torna cada vez mais duro em sua realidade.
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