Direção: David Lynch. Roteiro: David Lynch. Montagem: Mary Sweeney. Direção de Fotografia: Peter Deming. Produção: Alain Sarde. Direção de Arte: Peter Jamison. Música: Angelo Badalamenti
Lembro-me da primeira vez que assisti à Cidade dos Sonhos (2001). Na faculdade de comunicação, as referências que eu tinha à época eram insuficientes para o entendimento dos vários signos que o filme apresenta em toda a sua complexidade. Voltei para casa com uma inquietação superada apenas pelo maravilhamento de estar diante da obra de David Lynch pela primeira vez. Falar em primeira pessoa é importante porque é essa capacidade de aproximação por meio do estranhamento que define uma experiência como essa.
Na estória, quando a morena Rita, machucada e amnésica, encontra a loira e aspirante à atriz Barbie Betty, ambas iniciam uma jornada por trás da identidade de Rita. O problema maior é que, nas avenidas misteriosas de Los Angeles, nada é o que, de fato, parece ser. Partindo dessa ideia, entramos em uma espécie de labirinto fílmico onde a duplicidade de relações e sensações nos colocam diante de um inigualável jogo enquanto espectadores de um filme e sua natureza igualmente inimitável.
Sentirmo-nos seguros daquilo o que vemos é uma das principais vertentes do cinema como experiência. Ao longo da história do audiovisual, toda uma gramática em torno dessa arte foi sendo construída baseada nos elementos do gênero e dos conceitos trazidos pelos movimentos cinematográficos, suas companhias e autores. Em Cidade dos Sonhos (2001), o exercício de Lynch parece ser subverter boa parte, senão, todos esses códigos e conceitos.
Existe uma espécie de ironia em torno da proposta que o filme traz, sobretudo ao longo do seu primeiro ato. O desenvolvimento da sinopse é feito seguindo todos os preceitos de uma narrativa construída com base nos clichês de uma jovem atriz que busca emergir em Hollywood. Assim, somos apresentados à uma Betty bela, dócil, casta. Que é introduzida por uma trilha sonora genérica, fotografia e construção de cenas que a tudo remetem aos filmes B. Tudo seria um problema não estivéssemos discutindo David Lynch.
Por isso que refletir sobre o fazer desse diretor como um exímio manipulador de reações é algo tão definitivo para o entendimento da sua obra. Aqui, essa brilhante manipulação vem como forma de nos mostrar tudo o que o cinema é capaz. Ele cria uma atmosfera de superficialidade em torno de cada uma das situações a que os personagens estão envolvidos como modo de nos preparar para a reconfiguração que a narrativa sofre a partir do início de seu terceiro ato. Essa fragmentação é outra importante chave do entendimento do filme como um todo.
Tal quebra, entretanto, é realizada muito conscientemente a partir do momento em que Rita e Betty “trocam” de identidade. E aí, evocando Ingmar Bergman numa referência clara à obra prima “Persona” (1966), Lynch nos introduz ao rompimento do filme. A partir desse ponto, entendemos que o que víamos até aquele momento era apenas uma perspectiva da estória. Daí, saem o conceito da trilha genérica e da fotografia colorida e luminescente para uma outra abordagem, com uma música composta pelo próprio diretor à base de cordas e com uma noção fotográfica mais escura, sombria e suja.
Junto a isso, vemos também o esvaziamento do mundo em torno dessas personagens. Em termos de forma, é pelo design de produção que o filme nos evidencia essa mudança da chave sensório-interpretativa do longa. A casa de Betty se esvazia, e onde anteriormente tínhamos um cenário mobiliado, restam vãos imensos em indício explícito do desmoronamento do universo desta mulher, que se percebe uma pessoa altamente instável. Já Rita, assume a identidade da mulher fatal e ambígua. A dissimulação e a loucura, no entanto, são os signos restantes dessas figuras.
Todos esses índices são apresentados como sugestões dentro da obra. Esse ato de sugerir é o que torna Cidade dos Sonhos tão potente. Por isso que, tentar interpretar o filme buscando seus sentidos como se estivéssemos a explicar algo ao redor do seu todo não faz muito sentido. Estar diante de um Lynch não significa explicarmos cada uma de suas intenções. Significa, sim, vivenciarmos a experiência sensorial, estética e de sentido que sua obra partilha. Há padrões, claro, os personagens em duplos ou duplas, a construção narrativa por meio da referência e caricatura dos gêneros do cinema. Tudo isso endossa esse fazer.
Formular uma ideia do quanto o cinema contemporâneo pode ser algo definitivo no aprimoramento do nosso olhar e de nossas relações com a obra de arte é verdadeiramente um desafio. Pensar o fazer desse filme que não se estabelece por meio de um único gênero, mas sim pela sua mescla consciente entre tantos outros é o que nos leva ao seu encontro. Por isso Cidade dos Sonhos é não apenas um cult, mas sim um thriller, gangster, crime, musical, romance, fantasia, surrealista, terror, erótico e por ai adiante.
Então, que filme é esse que nos tira do nosso lugar e nos inicia ou recoloca dentro da pertinente condição do questionamento sobre o ser e o estar da arte na contemporaneidade? Difícil responder. Talvez algo próximo do que seria a obra fílmica perfeita?! Pode ser, assim como também não seja nada disso. Esse é o jogo de Lynch. É a condição que os grandes mestres da imagem dividem conosco.
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