Direção: João Dumans. Affonso Uchoa Roteiro: João Dumans. Affonso Uchoa. Montagem: Luiz Pretti. Rodrigo Lima. Fotografia: Leonardo Feliciano. Produção: Vitor Graize. Direção de Arte: Proscila Amoni. Música: Francisco César. Som: Gustavo Fioravante.
O cinema brasileiro é o melhor do mundo, sobretudo ao considerarmos a experiência cinematográfica contemporânea. Composto por uma centena de trabalhos que já superam em muito o espectro das obras amarradas ao vezo temático ou dos grandes ciclos regionais, por exemplo. Conseguimos hoje criar e sermos tocados por narrativas que transcendem esses tópicos e elevam o fazer artístico em questão. Dessas experiências é que surgem filmes como Arábia (2018).
No longa, conhecemos André (Murilo Caliari), um jovem que vive com sua família em um bairro industrial em Ouro Preto. Um dia, ele encontra um caderno de anotações de Cristiano (Aristides de Sousa), um dos trabalhadores de uma velha fábrica de alumínio daquela localidade. A aparente simplicidade do enredo se agiganta em vista do desenvolvimento de uma jornada que mescla elementos da natureza laboral do trabalho e o exercício da subjetividade que se põe à prova a todo momento em um cotidiano árduo como vemos na sociedade brasileira.
Mas não nos enganemos. Arábia é uma obra muito particular. E para além daquilo o que podemos entender como o exercício cinematográfico de “êxito” como os Cidade de Deus e Tropa de Elite se venderam ao redor do mundo e através dos anos que nos antecederam, aqui, estamos diante do fazer cinema que surge de tudo aquilo o que a autoria pode de melhor entregar. Seja no tocante à reflexão que ele nos estimula, seja pelo lirismo contido nas suas mais particulares passagens. E como elas são numerosas!
Para enxerga-las, inicialmente, precisamos entender que não embarcaremos na jornada do indivíduo de classe média que será a “ponte” àquele outro sujeito destituído do seu lugar de fala, agora, é protagonista da sua própria estória. Sua subjetividade é apresentado dentro deste filme quase como que um direito inalienável, assim como o deveria ser para com o dia a dia da vida real. Em suma, a ideia dos diretores Affonso Uchôa e João Dumans foi atenuar qualquer ideia que representasse mediação.
Ou seja, Cristiano é dono da sua narrativa. É claro que a estória do nosso protagonista só começa quando suas memórias são encontradas por André a partir do caderno. E quando a narração em off se inicia, é que toda essa extraordinária aventura desse homem ordinário também tem início. Vemos, portanto, somente passados 22 minutos de duração do filme Cristiano surgir imponente por sobre umas construções rochosas que simbolizam o começo dessa estória a partir da sua saída da prisão. Ele está pronto para recomeçar.
Falar desse recomeço é importante em Arábia porque ele resume bem dois pontos vitais para o modo como o sentimos. Primeiro, do fato de ele ser um filme que, como o próprio Afonso e João reconhecem, ter nascido mais das perguntas que envolvem sua narrativa do que de um anseio por encontrar qualquer resposta ou mesmo o repasse de uma mensagem obrigatória com algum senso moral pré-fabricado ou auto imposto. A ideia aqui é o estabelecimento de uma relação que o protagonista cria com as pessoas e lugares ao seu redor.
Estamos diante de um épico nacional, guardadas as circunstâncias e nos abrindo a imaginarmos novas possibilidades interpretativas da nossa cinematografia. Há o acompanhamento e consequente desenvolvimento da narrativa de Cristiano mas os contornos que os eventos que ocorrem no recorte que o filme nos dar a ver podem ser tomados como uma metáfora de uma construção nacional que se ancora nas pegadas desse homem. Essa é a grande potência sugerida em Arábia.
Onde podemos olhar para esse personagem fazendo-o além da figura marginalizada. Nosso herói não implora nossa pena. Ou se constrói na tela com vistas a uma mera exposição estereotipada do anti-herói brasileiro. Ele pode até não saber onde seus passos o levarão, mas encontra-se o tempo todo em trânsito. Por isso o filme também acaba se desenhando como um road movie*, por sua vez. Na estrada, os capítulos a que somos apesentados vão seguindo sempre a frente. E na série de eventos e situações ali descritas, pouco a pouco vamos entendo que o que importa nesta obra é o trajeto feito e não necessariamente o destino a se alcançar.
Como um bom filme contemporâneo, Arábia nos partilha uma estória que segue após o início dos créditos finais. Sua conclusão fica a cargo do sentido que apreendemos ao longo das suas 1 hora e 38 minutos de duração. E como toda grande obra que nos ajuda a ressignificarmos o olhar, o longa evoca uma série de outros sentidos que vão da intertextualidade com o próprio cinema, uma vez que Cristiano pode ser tomado como uma releitura tocante dos operários retratados nos marcantes ABC da Greve (1991) e Eles não Usam Black Tie (1981) de Leon Hirzman.
Assim como o é, de fato, uma experiência exitosa do poder que a arte tem de reinserir e ressignificar a realidade das pessoas que estão implicadas nos seus processos de feitura. Uma vez que enquanto ator, Aristides pôde construir o personagem que queria a partir daquilo o que o roteiro do longa previamente expôs.
E também criar camadas brilhantemente inseridas entre 2014 a 2016, intervalo de tempo de gravação do longa. Esse fazer cooperativo, onde atores, equipe técnica e direção atuam juntos é o futuro e uma chave decisiva que garantirá em larga escala a excelência do cinema brasileiro. É disso que depende nossa arte, e Affonso Uchoa e João Dumans entendem isso claramente.
Comments