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Amor à Flor da Pele: a solenidade contida na partilha cotidiana dos afetos


Direção: Wong Kar-Wai. Roteiro:Wong Kar-Wai. Montagem: William Chang. Direção de Fotografia: Christopher Doyle, Pung-Leung Kwan, Ping Bin Lee . Produção: Ye-cheng Chan. Direção de Arte: Lim Chung Man. Design de Produção: William Chang. Música: Michael Galasso, Shigeru Umebayashi.



Toda análise das obras que compreende o paradigmático ano de 2000 tende a passar por determinadas linhas de percepção. A relação de alguns filmes com a sua concepção formal ou de sentido são algumas das veredas que conduzem e também nos guiam na leitura das especificidades contidas nesses trabalhos. Amor à Flor da Pele (2000) é um grande exemplo dessa proposta de cinematografia que se desafia enquanto exercício de um cinema germinalmente narrativo.


Antes, vale partirmos da péssima adaptação do título do longa em português. No original do inglês - In the mood of love - ou “No humor do amor”, o filme não nos dá uma representação de romance clássico. Não é a perspectiva padrão da estória romântica de uma relação impossível ou proibida. Wong Kar-Wai faz o caminho inverso à tradição hollywoodiana (As Pontes de Madison, 1995), ou mesmo da cinematografia erótica franco-japonesa (O Império dos Sentidos, 1976), por exemplo.


Toda essa contraproposta não emerge de um sentimento de recusa, obviamente. A veia autoral de Kar-Wai o garante a proposição de uma obra tão encerrada dentro de si mesma que nos parece quase impossível tocar adiante esse debate sobre até que ponto as referências são sentidas nela. Toda uma tradição do riquíssimo cinema chinês está ali, claro. Assim como um vasto histórico técnico-conceitual aprimorado pelo diretor desde o seu primeiro longa lançado autoralmente (Conflito Mortal, 1988).


É a investigação minuciosa sobre a solenidade contida na gestão do cotidiano que interessa. O filme parte dessa construção de gênero que tem o projeto romântico como base, mas o utiliza apenas como uma estrutura prévia no engate da estória. Seu interesse maior, de fato, é a dinâmica desses breves encontros entre as personagens. E em como essas relações variam sempre em função de uma lógica espacial muito bem definida. É o pequeno bairro chinês sessentista, que abriga a estrutura do pequeno conjunto de apartamentos constituído de outros menores quartinhos onde essas pessoas vivem suas vidas ordinárias.


Não estamos diante de um épico de amor histórico-contemporâneo. Até estamos, na verdade. Mas as linhas que tecem a narrativa, aqui, não estão unidas em um propósito de identificação e engajamento espectatorial propriamente ditos. Para cada conjunto de sequências e capítulos, a posição daquele que vê o desenvolvimento e desenlace da trama é pautado pela posição de quem apenas observa. Estamos sempre olhando pelos cantos das paredes por onde essas figuras transitam. E essa é uma das maiores beleza e potências do longa.


Por isso que, observar uma pessoa subindo uma pequena escadaria ou tomando um café em uma noite qualquer ressoam em outra escala. Kar-Wai transmuta o gesto corriqueiro da realidade cotidiana em um instante de elevada, mas singela grandiosidade. A câmera lenta, a música extradiegética ao fundo, assim como a composição dos objetos de cena e a luz da fotografia sempre bastante acentuadas, se organizam na fluidez dessa atmosfera do filme como conceito, como experiência sensorial e perceptiva da reprodução da realidade ficcional.


O convite desse cinema é o da partilha sensorial. Mais do que desvendar algo ou torcer por determinada resolução, vale entendermos as particularidades, contradições e especificidades dessas figuras. Afinal, que romance é esse que opera pelas engrenagens do desejo mas não funciona como um encontro avassalador casual? Esse é o jogo que se estabelece entre Su Li-zhen (Maggie Cheung) e Chow Mo-wan (Tony Leung). O amor não surge de uma concepção pré-fabricada. Ele é um argumento narrativo para uma forma outra de que a arte do cinema se vale para contar um estória destituída de clichês.


Mas o que seria, então, uma construção de cena onde dois personagens jantam em uma noite sessentista chinesa? Seria um ideal desse clichê reconfigurado. O filme recentraliza parte das situações que surgem em diversas obras da historiografia cinematográfica como ações de complemento e as realocam como sendo o elemento central de toda uma sequência. Novamente, para nos dizer: olha a relevância desse momento para a construção da dinâmica entre esse homem e essa mulher. O close na unidade mínima de significação cinematográfica(uma pitada de molho na borda de um prato) solidifica essa ideia.


E certamente esse é um dos principais ditames na gramática da arte do filme. Nosso olhar segue esse fluxo de recondução mesmo. Olha para isso e somente isso, muitas vezes, mas também para aquilo que muitas vezes não está em primeiro plano. Sustentar uma orientação dramatúrgica sobre o cotidiano e a ordinariedade da ficção é a beleza do cinema de Wong Kar-Wai.


O amor pode até ser apresentado à flor da pele, mas ele não tem nada de destrutivo. Ele sequer chega a se consumar, na verdade. Existe na beleza de não ser revelado. Perdura pelo entendimento que essas figuras têm da preciosidade contida na partilha da vida e na importância dos breves encontros diários para a consumação do amor em seus mais diversos tipos de humores.


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