Direção: Carlos Reichenbach. Roteiro: Carlos Reichenbach. Montagem: Cristina Amaral. Direção de Fotografia: Carlos Reichenbach. Design de Produção: Henrique Lanfranchi, Renato Theobaldo. Som: José Luiz Sasso.
A manifestação da cultura brasileira em meados dos anos 1990 esteve revestida por alguns traços bastante específicos. O processo de abertura política, após o período da Ditadura Militar, trouxe à reboque das produções culturais um torpor de libertação reprimido há mais de duas décadas.
E nesse tempo de mudanças nos processos de criação no campo das artes foi que muitos artistas sedimentaram obras dotadas de um forte senso crítico e criativo. Um desses nomes foi o de Carlos Reichenbach, que em 1993 lança seu fundamental Alma Corsária.
O longa acompanha a história de Rivaldo Torres (Bertrand Duarte), um escritor que, na noite do lançamento de seu livro, rememora diferentes momentos da sua vida junto às pessoas que o acompanharam ao longo dos anos. Como o próprio diretor narra em seu prólogo, o longa foi inspirado nas personas de diferentes amigos que ele cultivara em distintas épocas.
Esse dado em si é extremamente importante quando nos deparamos como um trabalho feito Alma Corsária. Porque o filme é um documento de uma geração que privilegiava as sensações absolutas, a amizade e a fé na utopia. Das palavras do próprio Reichenbach, partimos ao encontro de uma obra que carrega em si toda a essência de um cinema extremamente autoral e inventivo, assim como foi toda a filmografia de Carlão ao longo da sua vida.
Aqui, lidamos com um exercício cinematográfico aplicado quase que artesanalmente. Uma vez que é o realizador que assume a trilha sonora, a fotografia, a operação da câmera, o roteiro e a direção. Apesar de parecer centralizador, o fazer audiovisual de “Carlão” revelava, na verdade, um fazer orgânico que a lógica industrial não pôde subverter.
Fiel aos seus princípios, o filme é mais um entre os 22 que ele assinou e cujas marcas o definem bem como um dos mais importantes diretores na cinematografia nacional. E Alma Corsária, portanto, essa polidez vem mesclada com um ar de descompromisso velado sob um pano estético altamente bem construído.
Observar todos os enquadramentos dos planos no filme é atestar na prática o quanto Reichenbach sabia e entendia a relevância da técnica para a construção do sentido que o longa teria na sua construção total. Há, claro, um tom jocoso em muitas das atuações dos atores e na apresentação dos personagens da estória. Mas tudo isso se dilui no momento em que passamos a acompanhar toda a movimentação da câmera que segue cada um desses personagens com uma precisão e perícia extremas.
Praticamente falando, é como observamos o modo com que muitas das entradas e saídas de cenas dos personagens foram idealizadas. A ideia de elipse, ou o salto no tempo fílmico, é explorado de um modo que rompe a noção de distância entre os espaços por meio dos cortes entre cenas.
Vemos isso no momento em que temos uma dançarinas com nanismo performando numa praça numa manhã de São Paulo e no plano seguinte segue executando o movimento agora no salão de um quiosque noturno da mesma cidade. Aliada a isso, o longa mede muito apuradamente também como as músicas do filme atuam a fim de preencher com sentido narrativo espaços de vazio e modular as sequências harmonicamente, dotando a transição entre cenas de uma fluidez notável.
E aí é marcante notar igualmente como o diretor usa ferramentas como o silêncio para criar brechas e áreas de respiro dentre da própria narrativa alí construída. Ter o domínio e consciência da relevância em se explorar esses momentos de vácuo é sem dúvidas um dos dados que atestam o quanto Reichenbach era um exímio conhecedor do cinema como técnica.
Mas seu olhar se estendia também ao entendimento da cinematografia como arte primordialmente. E isso era posto por meio dos afetos que atravessam a estória desses personagens. A intelectualidade, a poesia, a boemia, a cinefilia, o amor, as paixões, o sexo e a luta do cotidiano, são uma espécie de carta de intenções para essa que faz de Alma Corsária uma das obras mais marcantes da carreira de Carlão e da trajetória do cinema brasileiro.
O filme é uma carta aberta à cinematografia como um espaço de contemplação ao que é belo. E por beleza, aqui, entendemos elementos dotados de uma singularidade única. Como na sequência onde o pianista Joaquim Paulo executa a canção Clair de Lune.
Não. Temos a representação do belo através de um homem ou mulher caucasianos com roupas de grife ou ternos alinhados. A beleza vem do singelo. De um homem negro, vestido simploriamente e que leva consigo só a beleza nua da arte como baluarte da indistinta representação artística.
Isso é a arte “Reichenbachniana”. Feita de camadas e escrita pelas mãos, olhos e mente de um homem das artes. E que entendia o processo artístico como uma via de potencialidades infinitas e não limitantes. Que não seguia cartilhas.
Exceto daquelas que levaram o cinema para frente, como referencialmente Reichenbach citava Godard e todos os demais parceiros e amigos que o ajudaram a explorar o cinema em toda sua potencialidade. Seja nos dias de ontem ou nos de hoje. Afinal, muitos de nós somos crias frutíferas de Carlão, assim como realizadores tais quais Thiago Mendonça ou Adyrlei Queirós.
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