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Acossado: a reimaginação dos possíveis na arte do cinema


Direção: Jean-Luc Godard. Roteiro: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol. Montagem:Cécile Decugis. Direção de Fotografia:Raoul Cotard. Produção:Georges de Beauregard. Direção de Arte Clément Hurel. Música:Martial Solal.


O que falar de uma obra como Acossado (1960)? Se para André Bazin o mito do cinema passa pela busca da sua invenção, uma vez que ainda sequer fora criado, essa obra-prima da cinematografia mundial reúne algumas das mais canônicas considerações sobre a arte do filme. A professora do curso de cinema e audiovisual encerrada nas suas referências da Nouvelle Vague a referencia; assim como também o faz o jovem cinéfilo, o realizador amador ou profissional e todo aquele(a) que mantém alguma relação mínima de aproximação com o cinema para além da sua vertente comercial.


Mas de onde vem esse encanto? E quais as suas reverberações na realidade de 2020? Os questionamentos aqui parecem mais oportunos do que apresentar sinopses. Jean-Luc Godard era (assim como segue sendo) um artista excepcional. E ao lado de François Truffaut (1932-1984), trabalhou em colaboração neste que foi um dos mais paradigmáticos encontros cinematográficos da história. Por isso a ideia da autoria é algo tão importante quando pensamos nesse filme.


Acossado foi a resposta prática de todo um grupo de teóricos e pensadores do cinema daquela segunda metade do século XX. E ancorados em uma sólida base argumentativa, tanto autores que antecederam Godard e Truffaut quanto aqueles que os sucederam partiram do exercício de determinadas obras para sedimentar todo um legado que se estende aos dias de hoje. Não estamos diante de uma estória inspirada pelos folhetins romanescos dos anos 1960. O espectro de trabalhos como esse ultrapassam imensamente isso.


Era preciso ir além. Afirmar por meio de um proposição formal e de conceito uma nova proposta de representação da realidade captada pelo cinema. Ao contrário de tentar emular uma construção ipsis litteris das situações que emanam do mundo real, buscou-se uma simplificação disso. Por isso a ideia de montagem é tão poderosa naquilo o que entendemos como a primeira fase da “nova onda francesa”. Não havia tempo para divagações sobre a elasticidade do tempo. Eu corro, mato e fujo em um intervalo de tempo de alguns segundos.



O impacto dessa nova proposição foi arrebatadora. Não havia mais volta após isso. Dá-se então, o início de todo um movimento de libertação da cinematografia moderna como a entendemos aos olhos da contemporaneidade. Aqui, o exercício é o da iconoclastia. A perspectiva narrativista segue como elemento central daquilo o que o filme é, mas ela já não pressupõe qualquer noção didática ou maniqueísta com seu espectador. A peça fílmica busca a sua emancipação própria a partir da relação com aquele que a olha.


Narratologicamente falando, não é como se as estórias contadas até então estivessem presas de algum modo. Mas o gesto de Godard e Truffaut aqui se coloca mais como um ato revisionista que desemboca nesse fazer audiovisual que se exprime por meio do amor à arte do cinema e à necessidade de pensá-lo propositivamente. No limite entre o fazer artístico e o ideário industriomercadológico reside a zona cinza apontada pela filmografia sessentista naquele momento. E se os filmes já não podiam ser os mesmos, quais tipos de obras seriam essas?


A resposta prática à pergunta recorre a um determinado conjunto de fatores. A ideia da intersecção formal talvez seja a que melhor define essa experiência francesa. Se para segmentos fortemente marcados pela noção de cortes e elipses no tempo, haveria de se modular também uma lógica de fluxo e estendimento dos atos captados pela câmera. Por isso vemos essa variação entre sequências muito ágeis e curtas junto a outras de maior duração.


Essa alternância, entretanto, nada tem a ver com qualquer indução de descompassamento narratológico. Pelo contrário. Ela reforça uma proposta de unidade discursiva e estética também. Trabalha o novo a partir de uma gramática do gênero já existente (o filme noir, policial e de crime) em união com uma abordagem mais crua da ficcionalização da realidade. Vemos uma ficção, mas todo seu pano de fundo nos remete aos mais valorosos experimentos de pioneiros como Jean Rouch e Robert Bresson.


A própria ideia de Michel Poicard (Jean Paul Belmondo) não ser uma figura a quem pretensamente devamos nos inspirar fala bastante do caráter transgressor da obra. Se o protagonista é aquele a quem não conseguimos nos projetar, ele não é modelo e logo um impasse se estabelece: ficar ou não com ele até até o fim? Essa possibilidade de escolha é outro grande ponto que o cinema da modernidade nos apresentou. Escolhemos ficar ou não com com Michel Michel a despeito de quem ele é ou da sua conduta diante do mundo.


O vanguardismo na realização de toda arte passa pelo olhar daqueles que percebem as proposições do presente pelas lentes do futuro. Godard, assim como tantos outros mestres da cinematografia em diferentes épocas e nacionalidades, entendeu o jogo. Reviu seu fazer de modo constante reinventando - se e reimaginando os possíveis da arte do cinema.

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