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ABC da Greve: As nuances de distinção do cinema nacional

Atualizado: 30 de abr. de 2020


Direção: Leon Hirzman. Montagem: Adrian Cooper. Direção de Fotografia: Adrian Cooper. Produção: Uli Bruhn. Som: Uli Bruhn.



O documentário foi uma das formas mais autênticas de manifestação da cinematografia brasileira. Por meio de histórias e personagens retratados em imagens em movimento, parte de uma memória nacional pôde e tem se constituiu ao longo das décadas que marcaram o século XX e tem marcado o século XXI. Dentre essas obras é que despontam trabalhos como o singular ABC da Greve* (1979).


Dirigido por Leon Hirszman, o documentário de longa-metragem acompanha o movimento grevista de 150 mil metalúrgicos da região do Grande ABC Paulista em 1979. O filme cobre, portanto, a trajetória desses trabalhadores que, liderados por Luiz Inácio Lula da Silva, lutam por melhores salários e condições de vida em um Brasil que ainda estava à sombra do fantasma da Ditadura Militar.


Apesar de ser uma obra que foi realizada em meio a um turbulento contexto histórico, “ABC” é um filme que se distingue em função do modo sutil como Hirszman pontuou cada nuance que compõe o longa como um todo. Essa sutileza, entretanto, nada tem a ver com qualquer senso de condescendência ou reacionarismo que o diretor poderia acabar manifestando em maior ou menor medida. Isso, obviamente, não ocorre e o resultado é uma experiência, já nos anos 1970 que nos prova que o cinema brasileiro o era (assim como ainda o é) uma das formas de expressão artística mais fortes e completas de sentido, considerando o restante da produção ao redor do mundo.


Há, inicialmente, um coeficiente estético muito bem definido. Assim, temos usualmente a presença de uma câmera totalmente inserida na ação. Sua precisão e foco são tão flagrantes que por vezes temos a impressão de estarmos assistindo a um longa de ficção, dada a exatidão dos registros que esta câmera capta. Mas como estamos diante de um documentário, temos a inequívoca noção final de que a perícia das imagens coletadas vinham de um exímio trabalho conjunto de direção e fotografia. Equipe esta que já contava com grandes fotógrafos e cinegrafistas, como um jovem Lúcio Kodato.


Existe, portanto, um senso de emergência no registro que era feito, mas que em nenhum momento estava apartado do senso estético do cinema como um fazer. Por isso o sentido de uma decupagem feita em tempo real é tão claro como linguagem dentro do filme. É isso que atestamos quando vemos uma sequência onde um dos líderes sindicais cruza a rua junto de um chefe de polícia para acordarem os termos das ações que os grevistas poderiam executar sem que sofressem qualquer intervenção. O movimento da câmera é contínuo e nos dá um recorte exato da ação em curso. Cruzamos a rua com os personagens e voltamos para o outro lado como se estivéssemos juntos dos mesmos.


Não há, nesse sentido, um distanciamento entre espectador e obra. Estamos inseridos na narrativa e isso ajuda a criar um tom muito mais sóbrio ao longa. Ele se afasta da frieza do registro documental pela sensibilidade com que Hirszman e sua equipe trabalham temáticas e personagens. Juntos, esses índices somam-se para a criação de um filme sólido em termos de forma e sentido. Afinal, são realmente impressionam as composições que a massa de milhares de homens e mulheres formavam a cada nova assembleia que se estenderam durante os 60 dias do movimento grevista.


Igualmente também é de se impressionar o feeling de Hirszman ao perceber que algo extraordinário estava se desenrolando naquele ano de 1979. Uma vez que foi em meio à produção do seu longa de ficção Eles não Usam Black Tie (1981), vencedor do Prêmio Especial do Juri em Cannes e do Leão de Ouro em Veneza, que o diretor realizou “ABC”. Foi um filme emergente, que só poderia ter sido realizado naquele momento e que singularmente representa um dos momentos mais polidos da nossa cinematografia.


Olhar par o filme 40 anos depois da sua criação nos soa igualmente premonitório se consideramos a história como um organismo vivo que segue em marcha constante. A figura de Lula, que assumia-se já como uma forte liderança na época, nos traz um inconteste sentimento de inquietação se nos dispomos a dialogar com o filme em uma perspectiva crítica e dialética. Esse binômio, a propósito, foi o que Hirszman se valeu para não cair em qualquer reducionismo que opõe bem contra o mal. Ele assume a posição do homem de classe, mas em nenhum momento se entrega a um olhar unidimensional desse exercício.


Ele assume também as contradições de um país que já se desenhava em colapso. Onde populações inteiras se esquadrinhavam à margem de um projeto de nação que igualmente se fazia (e ainda se faz) necessário em todas as suas vertentes. Dai porque o filme não é apenas um perfil da classe trabalhadora brasileira setentista, mas também uma obra que discute e contesta a própria condição dessas pessoas e a emergência de se pensar alternativas que se mostraram pouco resolutivas como atestamos ao longo das décadas que seguiram à abertura politica.


Pensar uma obra como ABC da Greve, é nos debruçarmos sob um cinema que, longe de tentar alienar o espectador na compra de visões, busca traçar paralelos e provocar inquietudes a partir do ato artístico. E em tempos de acirramento de posições politicas como vivemos na contemporaneidade e conjuntura do Brasil de 2018, o filme dialoga diretamente conosco no agora. Aqui, temos a autenticidade de um mestre da cinematografia que observa o momento do presente com cuidado a despeito de obras de cunho genérico como Lula, o Filho do Brasil (2009) ou Polícia Federal: A Lei é para Todos (2017).


“ABC”, na verdade, inspira diálogos diretos com obras contemporâneas que semelhantemente tratam o Brasil por meio de técnica e linguagem cinematográficas de maneiras exemplares. Filmes como Arábia (2018), de Affonso Uchoa e João Dumans, tratam a cultura e a política brasileira de modo brilhante por meio de protagonistas que são herdeiros diretos dos filmes de Hirszman. São homens comuns que ganham contornos épicos em suas jornadas. E essas pessoas é que interessam a esse cinema e não juízes e magistrados que vão a sessões de filmes apológicos.



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