Direção: Luis Buñuel. Roteiro: Luis Buñuel. Salvador Dali. Produção: Le Vicomte de Noailles. Música: Georges Van Parys. Fotografia: Albert Duverger. Montagem: Luis Buñuel. Design de Produção: Alexandre Trauner.
Vamos partir de um princípio: Luis Buñuel foi um dos maiores artistas de todos os tempos. Não há nada de novo aqui, certo?! Mas considerando os 90 anos de uma obra como “A Idade do Ouro” (1930), fica difícil desconsiderar a força e influência dessa figura para a arte moderna e contemporânea. Passada todas essas décadas, o que o filme dirigido por esse mestre espanhol e roteirizado por Salvador Dalí, tem a nos dizer sobre tudo o que somos hoje em nossa realidade contemporânea?
A sinopse dá conta de uma história surrealista de um homem e uma mulher apaixonadamente apaixonados um pelo outro. Suas tentativas de consumar essa paixão, entretanto, são constantemente frustradas por suas famílias, a Igreja e a sociedade burguesa. O média metragem, segundo trabalho dirigido por Buñuel, pode ser muitas coisas. É uma crítica social, um filme experimental, um conto erótico, uma obra surrealista que antecipou em pelo menos 11 anos os códigos apresentados por Orson Welles em “CIdadão Kane” (1941).
Para além de tudo isso, A Idade do Ouro é uma estória de amor. Apesar desse dado parecer estar na superfície, é preciso olhar além do que as imagens e os sons imprimem e ressoam nisso que entendemos pela linguagem audiovisual. Afirmar isso interessa porque esse Homem (Gaston Modot) e Mulher (Lya Lys) encarnam uma espécie de linha mestra ou fio condutor da narrativa inteira. Apesar de surrealística, ela é declaradamente moderna.
No prólogo, temos uma estrutura quase documental sobre a natureza dos escorpiões e ratos no deserto. Teria essa exposição algo a ver com o restante da trama que viria a seguir? Total. Porque ela parece sempre girar em torno da reflexão sobre a recusa aos valores morais da sociedade burguesa. Essa busca pela negação na vida, no entanto, não necessariamente parece ligar-se a uma vertente pessimista, por exemplo.
Há alguma esperança no encontro dessas duas figuras, assim como há esperança no caminhar do grupo de mineiros que vemos no primeiro ato da obra. Ambas representações estão indo sempre à frente. Seus passos os guiam rumo a uma rota de progressão que pode ser feliz ou não. Os trabalhadores seguem a trilha do desconhecido, os amantes seguem as veredas do seus corações. Ambos dividem um caminho de afirmação da contrariedade.
É ai que notamos por que o movimento surrealista foi de fato vanguardista. Ele estava e era feito por artistas que estavam à frente de seu próprio tempo. Em 1929, o mundo moderno passava por eventos fundamentais da sua estrutura como a Grande Depressão na América do Norte ou do início da experiência relativamente democrática brasileira com o início do governo de Getúlio Vargas, na América do Sul.
As obras propostas por esses autores, os quais incluímos Buñuel e Dali, pensavam as relações de representação desse mundo de modo bastante franco e sem romantizações. O que eles sentiam acerca daquele contexto, imprimiam na tela. E o filme trazia em forma e sentido essa perspectiva.
O desejo sexual, a depravação, a injúria, o ódio e a paixão são retratadas no filme com uma sobriedade que apenas se tornaria comum 50 ou 60 anos depois com as primeiras experimentações do cinema narrativo contemporâneo ou do cinema expandido e experimental dos anos 1970 e 1980.
Estar a frente do debate e fundamentar a crítica a partir de elementos de contradição é o que reforça a legitimidade de um trabalho como esse. Fazer o contraponto por meio dos elementos da cinematografia é algo complexo. Exige clareza autoral e capacidade de interpretação do contexto em que a obra se insere.
Porque quando O Homem chuta um cachorrinho de uma madame, rola na lama com sua amada ou bate no rosto de uma senhora burguesa com quem há pouco conversava, ele o faz por ser um produto direto dessa contradição do mundo moderno. Tanto as personagens do “Homem” quanto da “Mulher”, congregam a figura desse ser desviante, errático e por quem podemos até dispensar qualquer empatia.
O protagonismo dessas figuras não emula qualquer desejo de engajamento por nossa parte. O espectador não parece convidado a se projetar nesses arquétipos exatamente porque eles são verdadeiros, autênticos, humanos. A amoralidade latente nas suas ações é a assinatura de Buñuel e Dali contra a suposta proposta de um “mundo melhor” que se supunha em 1930 e ainda hoje ecoa na experiência da vida contemporânea.
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