Direção: Béla Tarr, Ágnes Hranitzky. Roteiro: Béla Tarr, László Krasznahorkai, György Fehér, Gyuri Dósa Kiss, Péter Dobai. Produção: Franz Goëss, Paul Saadoun, Miklós Szita. Fotografia: Gábor Medvigy, Erwin Lanzensberger, Patrick de Ranter, Rob Tregenza, Emil Novák, Miklós Gurbán. Montagem: Ágnes Hranitzky. Direção de Arte: János Breckl. Música: Mihály Víg.
O que pode um filme? Ou melhor, o que define a grandiosidade e preciosismo da experiência cinematográfica contemporânea, especificamente? No caso da arte de um realizador como Béla Tarr, é a sua compreensão da prática do cinema como um gesto político. Sua abordagem para com o tratamento e concepção das imagens no mundo é, de fato, uma atitude estética e politizante. A crítica não vem enquanto resposta ou negativa de um valor a ser combatido, mas sim, na reafirmação de determinados ideais defendidos pelo autor.
Em “A Harmonia Werckmeister”, um desses valores é a crença, não inabalável, na humanidade. Mas não nos enganemos, esse acreditar não se baseia em um ideal superficialmente elaborado. Tudo é densidade na proposta de um autor que imprime na tela a sua perspectiva sobre o mundo. Pelos olhos de Tarr, os dias são pintados a partir de uma paleta monocromática onde o cinza, o branco e preto moldam um mundo cerrado entre o bem o mal.
Na “Harmonia…” esse dualismo em nenhum momento significa a busca por engajamento espectatorial esvaziado de qualquer sentido. O filme, na verdade, é, entre tantos temas, sobre sentir em diferentes proporções tudo o que as imagens e faixas sonoras delegam na experiência do cinema. As informações nunca são dadas como sendo definições finais da natureza dos seus personagens, por exemplo. Seria János (Lars Rudolph) um protagonista isento de qualquer motivação moral? Não temos respostas definitivas disso, O que é ótimo.
Por isso que a ambiguidade é tão potente e assume uma tomada diretiva ao longo de todo o filme. Ao tempo das suas 2 hora e 20 minutos de duração, temos a predição de que algo muito ruim vai ocorrer. E de fato isso ocorre. Voltamos à monocromaticidade citada anteriormente. O interessante, entretanto, é o fato de Tarr não explorar essa perspectiva de um modo apelativo. Esse mal é assumido por meio de uma vertente não-maniqueísta. Os “homens maus” da trama estão em cena quase de forma alegórica.
Eles existem e a materialidade disso se dá no corpo coletivo desse terror que surge no meio da noite húngara. Essa tragédia anunciada, no entanto, se resguarda no silêncio de uma longa caminhada que precede a violência e o caos. Não ouvimos ou vemos palavras de ordem, gritos. Retornamos ao cinema mudo das primeiras três décadas do século XX. Esso é o convite à reflexão que Tarr nos sugere. Às portas do século XXI, o filme parte desse lugar e tempo quase inomináveis.
Não sabemos direito em que ano toda a narrativa se passa. Estamos nos anos 1990, 1970 ou pós anos 2000? Nada disso está definido. Essa demarcação, na verdade, pouco importa. Para além da ideia do filme de nicho, ou art house, vale a reflexão acerca do cinema como uma máquina propulsora de ideias sobre a vida. Não importa tanto o que ocorre à János. Nos preocupamos com ele porque ele é nosso protagonista. Todavia, a estória não se encerra nele. Ela é conduzida pelos seus olhos e pés, mas não se fecha nele somente.
Mas o cinema de Béla Tárr em nada se apóia em um ideal de inacessibilidade. Não é uma jornada simples. É preciso algum investimento de energia para se acompanhar todo o filme em suas 34 densas sequências. Cada segmento desse possui cerca de 3 a 8 minutos. Muitas cenas ocorrem por meio de uma decupagem em tempo real. Vemos os personagens transitarem de um cenário a outro sem que qualquer corte ocorra entre as cenas, por exemplo. Toda a ação ocorre no fluxo dos acontecimentos.
Aqui, a cinematografia se torna uma experiência. O que ela quer de nós é o engajamento junto a um outro tipo de cinema. Aquele cujo interesse não reside na construção climática somente. A representação da Noite do Terror ocupa esse espaço, certamente. Mas mesmo ela, não se desenha em um contexto espetacular ou apelativo. Uma orda de homens marcham para destruir tudo o que há em um ponto específico da cidade. Chegando no ponto de destino, um hospital localizado no centro, a descarga de violência e desordem tem início.
Interessante como ninguém, de fato, parece se ferir. Todos os golpes dados por esses homens em fúria estão na escala da representação. É visível que toda essa descarga de fúria contra esses personagens acamados e enfermos estão em uma outra ordem. Estão no universo do hiperrealismo. Eles servem como códigos que nos dão uma ideia do que essa brutalidade significa. Ela já é pesada demais para ser reduplicada na ação que as cenas traz. Essa é a beleza do olhar de Tarr.
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