Direção: Lars Von Trier. Roteiro: Lars Von Trier, Jenle Hallund. Montagem: Jacob Secher Schulsinger, Molly Malene Stensgaard. Direção de Fotografia: Manuel Alberto Claro . Produção: Leonid Ogarev. Direção de Arte: Cecilia Hellner. Música: Victor Reyes.
É preciso que se faça um exercício de distanciamento imenso ao lidarmos com o cinema de Lars Von Trier. Dono de uma filmografia marcada por temas que transitam entre os desejos e inquietações do humano em meio a uma vida terrena que parece não dar conta dos anseios e aflições que lhes são próprias, o realizador dinamarquês retorna com uma nova obra de ficção provocativa e intensa intitulada “A Casa que Jack Construiu” (2018).
O filme conta a estória de Jack (Matt Dylon), um perspicaz serial killer que relata, para um velho sábio chamado Virgílio (Bruno Ganz), o percurso de uma longa lista de assassinatos cometidos por ele em um período de 12 anos. Ao mesmo tempo em que vamos descobrindo a improvável trajetória do psicopata, embarcamos com ele em uma jornada rumo à sua loucura interior em um caminho talvez sem volta. A partir disso, Von Trier desenvolve a narrativa do seu 15º longa-metragem.
De todos os pontos que podemos destacar do filme, o contrabalanceamento entre a ironia, o terror e o drama histórico dão a consistência de uma obra bem mais sóbria como não víamos desde Melancolia (2011). O uso de uma estética que mistura planos em super câmera lenta ocorre em um único e decisivo momento. Isso prova, conceitualmente, o quanto Von Trier esteve conectado com o trabalho que desenvolvera. As decisões dele enquanto realizador, entretanto, volta e meia retornam para as contradições temáticas que marcaram sua carreira enquanto autor.
Isso, na verdade, acaba operando para a criação de uma atmosfera de intriga que beneficia e fortalece o diretor como um dos mais distintos no circuito cinematográfico autoral na Europa. Provocador, ele não abre mão da experiência de inquietar o espectador. Como se para além da estória que se propõe a contar, seu prazer consistisse, na verdade, em forçar e pressionar aquele que se encontra diante do filme no confronto com alguns dilemas morais definitivos.
Mulheres de diferentes perfis que são mortas nos mais diversos contextos. Animais que são mutilados, crianças e homens adultos que são colocados em situação de tortura e pressão psicológica. A lista de situações-limite de Lars Von Trier parece o tempo todo nos instigar a sair do lugar espectatorial. Entender isso, portanto, é não deixar-se pegar pelo truque de um mago da imagem.
E aí, a diferença entre o espectador passivo, que emerge junto às imagens e a narrativa; e o analítico, que entende cada uma das suas nuances, é definitivo para a experiência desse cinema. Se deixar pegar ou não vai depender da sua capacidade de distanciamento. Olhar para um filme como “A Casa que Jack Construiu”, logo, é entender uma obra como um todo. Por isso, quando em determinado momento do longa Von Trier propõe uma “pausa” na narração e insere uma reflexão sobre as determinantes do trabalho artístico e suas implicações no/e com a realidade que vivenciamos, vivemos ou ouvimos falar, é um gesto bastante sincero.
Nesse momento, ele nos tira do meio da loucura que a narrativa de Jack nos lança e oferta um “intervalo” reflexivo dentro do onirismo que a sala de projeção nos evoca. Podemos não concordar com o conceito do realizador dinamarquês sobre toda a ideia de eugenia e os ditames do que foi o período do Nazismo, mas propor um ponto de inflexão desses é também um ato de coragem, temos de admitir. É inoportuno, dado o período em que nos encontramos, com toda problemática ascensão dos extremismos em vários continentes do mundo, mas ainda assim é um ponto de vista defendido.
Mas se todo ponto de vista é a vista de um ponto, o ponto de onde a vista de Von Trier se lança é ingênuo. Assim como ingênuo igualmente é o seu personagem. E aí, diferentemente de Selma (Bjork), Grace Mulligan (Nicole Kidman/Bryce Dallas Howard) ou mesmo Joe (Charlotte Gainsbourg), Jack pensa-se herói, mas apenas se auto imagina, cego pela incapacidade de se ver dentro de um todo assim como todo narcisista o faz. E se aquelas personagens são, hoje, reconhecidamente fortes pelo seu próprio criador, aqui, este reconhece protagonista homem um ser clivado.
Sua ruína, entretanto, não vem do fato de ele ter ser eventualmente pego, e sim, em função disso não ocorrer. Aos olhos de todos, Jack passa despercebido, mesmo nos seus momentos de maior conflito, nos quais o que ele mais parecia ansiar era “o fim da linha”. E chegamos em alguns momentos em que ele mesmo se pressiona, assim como pressiona em alguns momentos suas próprias vítimas, entende?
Essa é parte da lógica justa de Von Trier para com seu próprio cinema, apesar de tudo. Mas o diretor, brilhantemente, temos de dizer, acaba nos dizendo o contrário ou melhor, justificando tudo isso por meio da lógica que o absurdo tende a nos impelir. E uma vez nela, talvez o mais razoável seja irmos até o fim para vermos aonde tudo vai dar. Pode ser numa caverna nos confins de uma alegoria dantesca?! Pode ser, tanto o é que assim para Von Trier a Casa que Jack Construiu o foi.
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